RELIGIÕES
Assados
e refogados
Por Jorge Messias
Correu o pano sobre a primeira parte do mistério pascal «As liberdades e a Concordata». Acontecimento banal que nem notícia chega a ser. As leituras dos jornais baralham e confundem. Tudo é e não é. E o grande espectáculo continua. O que não deixa de ser curioso é verificar-se de que modo os fantasmas dos bem-aventurados frades beneditinos continuam a cruzar os longos corredores do Convento de S. Bento da Saúde.
No debate sobre as
liberdades religiosas e a concordata, a tradicional capacidade
oratória de muitos dos contemporâneos tribunos do povo
revelou-se intacta. Tal como aconteceu, afinal, nos grandes e
saudosos tempos da Duma czarista, da falhada Sociedade das
Nações ou das palavrosas cortes monárquicas. Falar sem nada
dizer, eis o segredo. Gastar o tempo com elegantes construções
dialécticas, mas saber calar. A prática continua a resultar.
Tal como no plano musical, a obra final alcança-se combinando os
sons e os silêncios. Só deste modo se ascende à beleza das
áreas e das oratórias que revelam a genialidade dos
compositores.
Neste caso, a nível político-musical, a metáfora é correcta.
Mas a imagem culinária também seria aceitável.
Os beneditinos eram excelentes teóricos e homens de acção. No templo ou na cozinha - «Ora et labora». Rezavam e agiam. Da capela seguiam para a horta do convento ou para junto dos gigantescos fornos capazes de assar a metade de um boi, de uma só vez. E tudo se passava ali, aos Olivais de S. Bento. Cheguemo-nos a essas cozinhas do velho mosteiro.
Nas eras longínquas
que hoje olhamos com ternura mas que foram brutalmente duras para
os pobres, o açúcar usava-se por tudo e por nada. Tinha a
virtude de amaciar os assados e de dar variedade aos monótonos
gostos da culinária medieval. Era condimento e também
medicamento. Impunha-se, além disso, numa outra lógica de
consumo: o açúcar, tal como anteriormente o sal, representava o
passaporte lusitano para a Europa. Nos bufetes das cortes, nos
paços episcopais ou nos palácios dos aristocratas tinha
presença obrigatória. Inventavam-se novas combinações de
salgados e doces. Valorizavam-se os refogados. E o açúcar,
segundo se dizia, era preventivo e terapêutico. Embora fosse
crescente o número das indigestões, dos estupores ou das
apoplexias, entre as élites ricas. Como é evidente, os pobres
tinham uma outra dieta. Mas o açúcar servia a cozinha e servia
a política. Dir-se-ia, antecipando os termos actuais, que se
iniciava, a ambos os níveis, a época «soft» (suavidade e
doçura).
Os beneditinos não eram alheios a estas modas. Adoçavam as
ementas, combinavam os pesos e os volumes, sabiam exactamente
quando atingir, em cada prato, os temperos ideais. Assados, são
uma coisa; caldeiradas ou ensopados, outra bem diferente; e no
meio (onde talvez se encontre a virtude) os grelhados de dieta,
sem sal nem condimentos - outra variedade diferente - representam
uma terceira via.
Olhemos para a actualidade. Quem nos poderá assegurar que os
imaculados hábitos de S. Bento não se continuam a instalar,
invisivelmente, ao lado dos representantes do povo? Que não se
sentam à sua beira? Que não vagueiam por entre os seus
desabafos? Que não orientam a mão que deposita o voto? Que não
lhes adoçam o café? No areópago perpassa, por vezes, esta
incómoda sensação.
Votar, como se sabe, é importante em democracia. Votar, é
propor, num sentido ou noutro. É recusar o falso alheamento da
abstenção. Porque abster-se é rezar. É trocar o vigor da
acção pela passividade contemplativa. É recusar o risco e a
responsabilidade. É afinal, e em sentido bíblico, deixar a uma
das mãos que lave a outra.
Falo, naturalmente, em termos de análise pessoal, de opinião.
Mas parece agora evidente que os padres de S. Bento continuam a
habitar os Passos Perdidos. Ninguém os nota, como é óbvio.
Ninguém se apercebe disso, quando se sentam ao lado dos
notáveis e lhes selam os lábios, lhes sopram ao ouvido ou lhes
orientam os passos.
Não duvido que muitos dos eleitos nem sequer entendam essa
presença espectral. Se assim for, é tempo de despertarem. O
povo português - e não os esquemas abstractos das estratégias
políticas - deve constituir o único sujeito da sua acção e a
exclusiva referência das suas preocupações democráticas.