MÚSICA
Make up
«Gospel yeh-yeh»

Por Mário Lopes



Serão poucos os que, neste final de século, vêm ainda no rock o carácter de confronto e de libertação que assumiu nos seus inícios. Afinal, os meneios das ancas de Elvis Presley já não têm tanto sex-appeal como em finais dos anos 50, os gritos de Mick Jagger exigindo espaço para um «Street Fighting Man» não soam muito ameaçadores e os anarquismos punk de finais de 70 vão-se perdendo nos nostálgicos e pouco convincentes pregões «Punk is not Dead».

Há algumas semanas Paulo Moura, no editorial da Revista do Público, escrevia que «a ideia do escritor subversivo está completamente fora de moda», ao que acrescentava «diz-se que o sistema integra todas as manifestações de protesto e irreverência». Substituindo o escritor pelo músico manter-se-á a validade do pensamento, afinal, a uma época em que se ia descobrindo o poder de algumas palavras de ordem afinadas em refrões foi-se sobrepondo outra em que aqueles se encontram disseminados por todos os cantos do globo. Tal desenvolvimento deu-se, porém, a expensas do seu original carácter libertário, escondido agora por uma máquina comercial que procura ídolos «teenagers» limpinhos e inconsequentes, bem como pelos próprios artistas que se rendem às ditaduras vigentes, quer seja a editorial, quer seja a do grande público que parece apenas apreciar as posturas MTV ou o «single» mais rodado.


A revolução Gospel

E é por aqui que surgem os Make-Up, inventores do «Gospel Yeh-Yeh» que, mais que uma corrente musical, representa o que eles consideram uma teologia de libertação das massas oprimidas. A referência ao «gospel» surge por este ser, segundo a banda, «um exemplo de não-conformismo, uma espécie de "underground". Não é constrangido por necessidades de sucesso ou planos obsoletos como o capitalismo ou música pop. O Gospel, música catártica e apaixonada, existe para além de quaisquer restrições, temporais ou de outro género.»
Talvez por isso os dois primeiros álbuns dos Make-Up sejam registos ao vivo, pois é no cimo de um palco que se entregam totalmente ao manifesto que erigiram. Mais que um mero discorrer de músicas, um concerto dos Make-Up é uma celebração de energia electrificada, única e espontânea. O lugar para «falar, em primeira mão, directamente e no momento, do que nos interessa».
Tal não significa, porém, que os álbuns tenham uma menor importância; «Save Yourself», lançado quando 1999 se aproximava do seu fim, é disso exemplo. Pegando no poder da soul, em quase esotéricos psicadelismos e na negra sexualidade do blues, o álbum revela um experimentalismo, uma irónica sinceridade e uma urgência extenuante cada vez mais difíceis de encontrar. Sobre ele paira o espectro de James Brown (notório no «funky-feeling» da maioria dos temas) e, principalmente, de Arthur Lee (dos míticos Love), reflectido nas orquestrações, na estrutura musical e na voz de Ian Svenonius.


Os 60’s, Hippies e... Gospel

Se a experiência ao vivo revela um marcado comprometimento político e filosófico, os registos em CD são, por sua vez, manifestos puramente musicais onde, apenas contextualizado com o formato «Gospel Yeh-Yeh», se torna possível ler nas entrelinhas o seu alcance real.
«Hey Joe», versão do tema popularizado por Jimi Hendrix, é disso um exemplo. Eliminando o final tradicional da história, os Make-Up, num brilhante diálogo telefónico entre Joe e a sua amante, fazem o primeiro aperceber-se que será melhor não fugir aos seus próprios problemas e voltar para casa. Este reescrever da estória de uma música marcante da década de 60 acaba por ser representativa da perspectiva que Ian Svenonius tem daquela época: «o que era o movimento hippie senão homens refutando responsabilidades e sentando-se em casa a fumar erva?»
O que poderia parecer à primeira vista contraditório, dado as principais influências da banda serem oriundas da época por eles fortemente criticada, pode ser explicado pelas não assumidas, mas ainda assim demarcadas, vertentes nas quais os Make Up se dividem: arte e intervenção, uma reservada para os registos em disco e a outra, a par da primeira, para as actuações ao vivo. A verdade é que, por mais que o escondam, os arautos do «Gospel Yeh-Yeh» são amantes de música, com consciência porém das limitações a que esta foi sujeita pelos condicionalismos de uma sociedade que tende a absorver, suavizar e homogeneizar as fugas à sua boçal normalidade. Por isso Svenonius afirma que «o rock’n’roll hoje em dia, como poder, é quase um cadáver, com gente a tentar constantemente extrair-lhe alguma coisa. Na realidade, é o dinheiro que define os géneros musicais, o que muda é a tecnologia com o qual ela é construída.»


«Avante!» Nº 1378 - 27.Abril.2000