CRÓNICAS DA IDADE MÍDIA
A mistificação

Por Ruben de Carvalho


A cobertura televisiva das comemorações do 26º aniversário do 25 de Abril, nomeadamente nos dois canais da RTP, constituiu um dos mais reveladores episódios da capacidade mistificadora da televisão e o transparente resultado de uma elaboração política e ideologicamente para apresentar uma determinada versão distorcida da História.

1.
O eixo fundamental da operação funcionou em torno da coincidência entre o 26º aniversário da Revolução de Abril e o 25º das eleições para a Assembleia Constituinte.
A partir desta linha desenvolveu-se (no telejornal da RTP 1 com nada menos de três peças) a banalização das referências a 1974 e desenvolveu-se largamente a ideia de que as eleições de 1975 haviam constituído uma derrota do PCP.

2.
Para tentar dar consistência a esta conclusão, repetiram-se duas completas parvoíces: a primeira, que à data o PCP «dominaria completamente» o aparelho de Estado», inverdade histórica que a mais elementar documentação comprova. O PCP não tinha qualquer maioria na composição dos orgãos do governo, nos governadores civis ou mesmo nas comissões administrativas municipais, etc.
A segunda toca as raias da imbecilidade: a alternativa que se colocaria ao eleitorado em Abril de 1976 era entre uma «democracia popular do tipo soviético» (sic) que, segundo a RTP, o PCP defenderia, e uma «democracia de tipo ocidental» defendida pelos outros partidos concorrentes!

3.
É relevante sublinhar que em nenhum destes textos de «reconstituição histórica» foi feita a mínima referência a um acontecimento marcante ocorrido pouco mais de um mês antes do acto eleitoral: o golpe spinolista do 11 de Março.
Este silêncio é particularmente significativo de dois ângulos: por um lado, silencia-se o facto essencial, assumido pelo próprio Spínola e por outros envolvidos no golpe, que um dos seus objectivos centrais era exactamente impedir a realização das eleições cujos resultados toda a direita receava serem esmagadoramente favoráveis à esquerda.
Por outro lado, é um factor histórico que igualmente ninguém contesta (o dr. Mário Soares afirma-o preto no branco no livro de Maria João Avilez, Frank Carlucci disse-o com quantas palavras são necessárias, os responsáveis do PSD igualmente o escreveram na mais total candura, etc., etc.) que todos estes partidos estavam de uma forma ou de outra comprometidos na aventura spinolista, subscrevendo os seus objectivos, incluindo o adiamento do acto eleitoral e a alteração dos moldes democráticos em que se previa a sua realização.

4.
Torna-se seguidamente fulcral para a mistificação ignorar que praticamente todos os partidos concorrentes às eleições se apresentarem perante o povo português defendendo as grandes linhas programáticas contidas no Programa do MFA e que viriam a ser plasmadas na Constituição de 1976.
Nem o mais obtuso dos escribas conseguirá com um mínimo de rigor definir essa mirífica «democracia popular de tipo soviético» que o PCP defenderia, mas se por isso se entende um quadro de regime que incluísse alterações profundas na ordem económica (nacionalizações de sectores fundamentais da economia, Reforma Agrária, controlo operário), lado a lado com uma concepção do Estado democrático que completasse a arquitectura parlamentar e o semi-presidencialismo com a vertente de um dinâmico movimento popular como elemento constitutivo do sistema, então é preciso dizer que não só o PCP, como o PS, o então PPD e o MDP possuíam esses objectivos preto no branco nos seus programas partidários e eleitorais, tanto quanto que taxativamente os viriam a aprovar enquanto elementos determinantes do texto constitucional um ano depois.

5.
É à luz desta inquestionável realidade que os resultados das eleições de 1975 têm de ser interpretados. Antes de tudo o mais, eles constituíram uma esmagadora manifestação de apoio aos militares de Abril, à sua acção e às grandes linhas do programa político que apresentavam ao País. Este apoio, não concorrendo o MFA nas urnas, manifestou-se no resultado dos partidos que no seu programa afirmavam identificar-se com elas, isto é, o PCP, tal como o MDP, o PS, o PPD, o próprio CDS, para não falar das formações esquerdistas, exceptuando o MRPP.
Para se concluir politicamente o que significaram os resultados das constituintes de 1975 é assim essencial saber em que é que o povo português votou e a forma mais inquestionavelmente correcta de o fazer é analisar que Constituição elaboraram os constituintes eleitos. Até na medida em que ela se revelou posteriormente suportada pelo eleitorado, sendo necessárias mais de duas décadas, sucessivas eleições e as mais desbragadas alianças parlamentares para progressivamente a alterarem.
E a verdade é que a soma dos resultados eleitorais dos partidos concorrentes em 25 de Abril de 1975 e que geraram e votaram a Constituição de 1976 – PS, PPD, MDP e PCP – foi de 86% do eleitorado.
O PCP sempre se identificou com este projecto. Contestar este quadro no sentido de revisão da História de que a RTP deu na terça-feita um lamentável exemplo é admitir que o PS e o PPD agiram desde sempre de má fé, apresentando mentirosamente ao eleitorado um projecto político que não subscreviam, mas que inquestionavelmente os eleitores sufragaram.

6.
Finalmente, cabe perguntar: acha a RTP que as centenas de milhares de pessoas que se manifestarm nas ruas terça-feira passada o fizeram para comemorar o 25 de Abril de 1974 e o derrubamento do fascismo ou as eleições de 1975? Que conceito deontológico é este de aproveitar imagens de uma presença cívica de inequívoco significado para sustentar e dar credibilidade a outra ideia política e ideologicamente definida?


«Avante!» Nº 1378 - 27.Abril.2000