“Senadores”
e a desintoxicação

Por Correia da Fonseca



Não me lembro se já aqui alguma vez foi referida a rubrica «Senadores», de Carlos Cruz, mas desconfio bem que sim. Nesse caso, a opção tem o defeito grave de se estar a falar de programas pouco vistos, quer porque os temas abordados não coincidem com as escolhas dominantes do público quer porque o horário de transmissão não ajuda. Ora, bem se sabe que a crítica deve referir-se a programas vistos por significativa audiência a fim de não correr o risco de ficar a falar sozinha. O que acontece, porém, é que também é importante que pelo menos se fale de programas excelentes, ou simplesmente bons, atirados para horas pouco ou nada propícios em obediência a critérios de programação que privilegiam a mediocridade ou o mero populismo, porque «vendem bem». Critérios que, já se vê, não deviam ser adoptados por uma estação pública de televisão.

«Senadores» não tem ainda muitas emissões, não sei se vai ter muitas mais, mas sei que não me lembro de nenhuma que não tenha abordado um tema importante, o que prova o que aliás já não era difícil saber: que Carlos Cruz sabe escolher bem e é capaz de fazer bem uma televisão a sério. Os programas já havidos vieram também demonstrar que, além disto, Carlos Cruz sabe também o que é importante em cada assunto. Que nem sempre isso se torne óbvio em tudo quanto faz é uma outra questão que não importa esgaravatar aqui.

O assunto que desta vez esteve em «Senadores» foi «os políticos», e para o tratarem Carlos Cruz escolheu Pedro Bacelar de Vasconcelos, Alice Vieira, João de Deus Pinheiro e Odete Santos. Todos eles proferiram palavras importantes, talvez fundamentais, para o esclarecimento das questões que o tema suscita directa ou indirectamente. A maior das quais, parece-me, é a de que por detrás da prática constante de açular contra «os políticos», todos os políticos, a chamada opinião pública, resulta de facto o descrédito da democracia que apesar de tudo ainda subsiste, embora com óbvios defeitos, e de que «os políticos» são tacitamente apontados como a única dimensão. É uma estratégia que, nas minhas contas, data pelo menos dos anos 30, e que se nutre de demagogia e da aldrabice. Nesse terreno floresce o sonho de uma sociedade livre de «os políticos», sobretudo dos comunistas ou similares como por cá existiu até 74, e não há-de ser por acaso que são as vozes mais à direita as mais empenhadas na hostilização de «os políticos». Entende-se: os da direita bem sabem que, quando «os políticos» são riscados da vida pública, eles deixam de ser «políticos» e continuam lá, a mandar no País ou, dizendo com mais propriedade, a executar como hoje executam o que melhor convém aos que hoje de facto já mandam por detrás dos reposteiros.

Algumas verdades

Entre outras coisas, Pedro Bacelar de Vasconcelos disse do «flop» da economia mundial, obviamente capitalista, e acentuou que «o que mais caro sai aos contribuintes é a demagogia». Entre muitas outras coisas importantes, Alice Vieira lembrou que as palavras «político» e «intelectual» adquiriram entre nós uma clara conotação pejorativa, o que dá bem uma ideia do triste estado cívico e cultural do País. João de Deus Pinheiro retomou com alguma coragem uma verdade impopular: que «os políticos ganham muito mal em Portugal» (e logo Odete Santos recordou uma outra verdade sempre escondida, que é a de que os comunistas nem mesmo esse «muito mal» guardam para si). Quanto a Odete Santos, acontece que a sua intervenção foi excelente, verdadeiramente inestimável de uma ponta à outra, e de tal modo que não é possível registar aqui só o que nela foi mais relevante.
Quero acrescentar, já agora, que nestes últimos tempos até anda a parecer-me que a presença de Odete nas TV’s tem sido frequente de mais: é, em princípio, uma questão de mera gestão de imagem. Porém, de cada vez que ela surge, logo reconheço que «dessa vez» valeu a pena, e muito. Ela, até com peculiaridades de expressão gestual que em princípio lhe criariam deficuldades de comunicação pela TV, suscita uma empatia que decorre da convicção, do nenhum artifício, da força dos argumentos, da recusa de ficar calada perante inverdades. Voltou a ser assim desta vez.

E «Senadores» voltou a ser mais um esforço de desintoxicação pública. O que não é pouco nos tempos que vão correndo.


«Avante!» Nº 1378 - 27.Abril.2000