Sem ardil
Finalmente, o resgate do pequeno Elián
Gonzalez pelas autoridades federais norte-americanas pôs termo
ao insuportável circo que as mesmas autoridades circunstanciaram
quando, inconcebivelmente, consentiram que o jovem náufrago
cubano fosse transformado em objecto numa campanha de propaganda
torpe.
Sejamos claros.
Se esta criança viesse de outra nacionalidade, que não a
cubana, e fosse recolhida das águas da Flórida nas mesmas
circunstâncias do pequeno Elián, os responsáveis
governamentais norte-americanos, à semelhança dos responsáveis
de qualquer país civilizado, nem por um segundo abririam mão da
sua tutela e muito menos hesitariam em a devolver ao pai,
houvesse, ou não, em Miami familiares disponíveis ou
interessados em a acolher.
O direito dos pais aos filhos, e vice-versa, mais que um
princípio da civilização é um instinto com raiz no mais fundo
da humanidade, limitando-se os ordenamentos jurídicos nacionais
e internacionais a consignar o óbvio quando determinam,
liminarmente, a primazia da tutela paternal. Negar o reencontro
de um filho com o pai é que seria um absurdo de espinhosa
justificação por parte das autoridades de qualquer país.
Daí o desconforto com que, apesar de tudo, o Governo dos EUA
sempre lidou com o problema, acabando a pôr um travão ao
escândalo tarde, a más horas e «à americana».
Obviamente, só a proximidade das eleições presidenciais
norte-americanas dão sentido ao inconcebível aproveitamento
político da tragédia da criança por parte dos dois actores
maiores desta farsa os bandos anti-castristas de Miami e
os candidatos presidenciais dos dois partidos que polarizam a
vida política dos EUA.
Com interesses diferentes, estes protagonistas confluíram
grosseiramente na exploração pública do pequeno Elián: os
primeiros, porque queriam utilizar a criança como combustível
para os seus progroms anticomunistas, os segundos, porque
querem os votos dos primeiros.
O que, manifestamente, nenhum quis, nem por tal se interessou,
foi garantir o elementar direito desta criança à melhor
recuperação possível da tragédia que acabara de viver.
Tragédia, recorde-se, que teve o tamanho de um naufrágio onde
uma criança de seis anos perdeu a própria mãe e quase morreu
afogada. Recuperação, por isso mesmo, que urgia a
participação do pai. Só gente totalmente desprovida de
escrúpulos podia fazer tábua rasa destas enormes evidências e,
na decorrência, tentar a exploração da tragédia em proveito
próprio.
Neste quadro, a suspeita dedicação de um tio-avô e de uma
prima à vida de uma criança que nem sequer conheciam tem a
indignidade estampada no show business a que ambos,
voluptuosamente, se entregaram.
Salomão, se julgasse o caso, seria provavelmente tentado a
adaptar o ardil da espada com que apurou a verdade do amor
paternal em litígio.
Pelo que sabemos da perspicácia deste monarca bíblico, a velha
proposta de cortar a criança ao meio tinha hoje boas hipóteses
de se transformar na ameaça de fazer isso mesmo ao tio e à
prima.
E sem ardil. Henrique Custódio