«Comemorar o quê?»


Eis a pergunta feita pelos muitos milhares de brasileiros – sem terra, sem casa, sem direitos mas, segundo se diz, com muita democracia – que, pacificamente, se manifestaram as ruas de Porto Seguro no primeiro dia das comemorações dos 500 anos do achamento do Brasil. Fernando Henrique Cardoso (FHC), pragmático, encarregou a polícia de choque de responder à pergunta dos manifestantes. E a prestimosa corporação não se fez rogada, recorrendo aos métodos que lhe foram ensinados e que são os mesmos que foram ensinados a todas as suas congéneres da comunidade democrática: cargas violentas, granadas de gás lacrimogéneo, muitos feridos, muitos presos – ou seja, aquilo a que FHC chamou um «muito bom trabalho», tanto mais que «não via motivo para que índios e lavradores sem terra protestassem na festa dos 500 anos». Festa é festa, não é verdade?, então para quê os protestos?, ora tomem lá que é para ver se aprendem a viver em democracia.

Falando em directo para a SIC, Mário Soares pronunciou-se sobre as manifestações: «Para um democrata como eu sou, as manifestações e as greves são coisa normal», declamou ele em Porto Seguro. E, seguro pela visão tranquilizadora das costas dos polícias, entendeu não se pronunciar sobre as cargas policiais. Mas, democrata e humanista a tempo inteiro, achou por bem acrescentar: «Os índios?: tenho por eles um apreço enorme». Mais claro sobre as manifestações foi o «Diário de Notícias» que, recorrendo a uma linguagem que fez escola em tempos passados, informou assim: «Os manifestantes encheram as ruas e obrigaram à intervenção da polícia de choque» - informação que fornece ao leitor a imagem de uma pobre polícia de choque obrigada a intervir pelos malvados dos manifestantes que protestavam e, ainda por cima, pacificamente.

Por seu lado, FHC, num discurso que, a dada altura, fez lembrar o tempo histórico da notícia do DN, começou por elogiar a presença dos Sem Terra – presença que, disse, «nos traz a lembrança incómoda mas necessária, de que a concentração da propriedade da terra continua a determinar a exclusão de milhões de brasileiros dos benefícios do desenvolvimento» - e dos Índios, sobre a presença dos quais afirmou: «A expansão das fronteiras daquilo que viria a ser o território brasileiro deu-se ao preço da eliminação de povos indígenas, como hoje nos lembram – e é preciso lembrar – os seus representantes aqui em Porto Seguro». E foi na qualidade de «defensor dos direitos dos índios e dos sem terra» e de «intransigente defensor da democracia», que FHC – certamente «com o coração a sangrar», como Salazar usava dizer nestas ocasiões – ordenou a carga da polícia de choque contra «os representantes» dos índios e dos sem terra «aqui em Porto Seguro». — José Casanova


«Avante!» Nº 1378 - 27.Abril.2000