25 DE ABRIL SEMPRE!
Os
valores de Abril são eternos
entrevista
com o general Vasco Gonçalves
Texto de Anabela Fino
Numa época em que tudo parece ser posto em causa, é reconfortante saber que há coisas que não mudam. Não falamos de produtos mas de bens inestimáveis que são parte intrínseca da dignidade humana, bens que desde os primórdios da civilização moveram os povos na sua luta por um mundo melhor e mais justo. Falamos de valores, de ideais que fazem girar o mundo e dão sentido à vida dos homens. Valores que em Portugal estarão para sempre ligados à Revolução de Abril e a homens como o general Vasco Gonçalves, que 26 anos depois da madrugada libertadora mantém viva a confiança de que vale a pena lutar pela transformação da sociedade.
Quais os valores essenciais que estiveram na génese do 25 de Abril?
O exercício
das liberdades, o respeito pelo respeito sagrado dos povos à
autodeterminação e à independência, os direitos de reunião,
de associação, de expressão de opinião, o direito ao trabalho
devidamente remunerado e dignificado, o direito de participação
dos trabalhadores em tudo o que lhes diz respeito, os direitos
das mulheres, o respeito pela maternidade... enfim, todos esses
direitos de que tanto se fala aí pelos areópagos e de que os
portugueses e os povos colonizados estavam privados no tempo do
fascismo e do colonialismo. Os valores ligados ao trabalho, o
direito de participar na construção do seu próprio país, numa
palavra, os valores ligados à dignidade humana.
Mesmo as grandes conquistas do 25 de Abril, como as
nacionalizações, a Reforma Agrária, o controlo operário, são
também a expressão de valores que contribuem para a
realização do ser humano, para a sua felicidade, para o
respeito mútuo, para a solidariedade, para o esforço colectivo.
De um modo geral, penso que os valores de Abril estão afirmados
nos conceitos fundamentais da Constituição de 1976, quer do
ponto de vista político, quer económico, social, cultural, e
mesmo militar. Não podemos esquecer no meio disto tudo que há
também os militares, os valores que os militares prezam; e os
valores pelos quais os militares lutaram foram justamente pela
dignificação das Forças Armadas que não fossem sustentáculo
de um regime ditatorial, por umas Forças Armadas que fossem
comandadas por gente competente, incorruptível, capaz de
respeitar e de amar os valores democráticos.
Fala-se muitas vezes de «Forças Armadas espelho da Nação»...
Justamente, o que os militares queriam era que as Forças
Armadas fossem espelho de todos esses direitos, direitos
respeitados, e cujo exercício fosse uma realidade. Tudo isso
são valores. Não obstante as funções específicas das Forças
Armadas, elas também têm os seus valores...
E em que medida o conceito estratégico de defesa nacional, o valor do amor à pátria, da soberania, da independência nacional, são hoje respeitados?
Tenho sérias dúvidas que sejam respeitados com as doutrinas que estão a ser adoptadas, com a prática das próprias Forças Armadas, com as missões que lhes estão a ser atribuídas.
Vivemos na época da globalização, cada vez se fala menos de países e mais de interesses mundiais. O que é que estamos a perder ou o que é que estamos a ganhar com isso? Como é que esses valores que há 26 anos fizeram em Portugal uma Revolução tão bonita, têm ainda importância neste contexto?
Penso que o desenvolvimento das relações económicas internacionais, das interligações, é inevitável, é próprio do desenvolvimento da sociedade, independentemente até dos regimes. Quer numa economia capitalista quer numa economia socialista a tendência será para haver uma interligação cada vez maior das respectivas sociedades. Mas a globalização é outra coisa. A globalização corresponde ao aproveitamento dessa interacção, da internacionalização das relações a todos os níveis, para beneficiar grupos restritos da sociedade no sentido de poderem dominar grande parte da humanidade, servindo-se desses desenvolvimentos que correspondem a uma evolução das forças produtivas e das relações de produção para ultrapassarem a esfera económica e dominarem em todos os outros campos da actividade humana. E fazem-no através de meios coercivos, como o domínio da comunicação social, a política armamentista, as organizações financeiras internacionais. Evidentemente que isto tem repercussões nas Forças Armadas, ou seja, o domínio transnacional necessita também de umas Forças Armadas transnacionais. Ao nível das Forças Armadas há uma expressão que se pode dizer directa desses interesses transnacionais que dominam a sociedade, ou têm tendência para o fazer, de um modo totalitário. Quando se pretende dominar a sociedade em todos os campos da actividade humana, impor certos padrões de vida que são próprios de determinadas sociedades - por exemplo, impor o padrão de vida americano às sociedades europeias -, o que é isso senão uma política totalitária?
Acha que é viável o projecto de criação de umas Forças Armadas transnacionais?
É esse pelo menos o caminho que se está a pretender fazer trilhar países como Portugal. Estamos hoje a adoptar uma doutrina militar de intervenção externa a pretexto de garantir a paz, a defesa dos direitos humanos. Mas que paz e que direitos humanos foram garantidos com esta guerra do Kosovo, por exemplo? O que verificamos é que as missões no terreno das nossas Forças Armadas são missões de intervenção externa, encobertas com o manto diáfano da defesa dos direitos humanos, enquanto as missões de defesa do exercício da nossa soberania passam a segundo plano.
Essa tendência poderá vir a ter consequências, a provocar reacções, ou é pacífica a aceitação desse papel das Forças Armadas?
Isso depende da consciencialização das pessoas. Verificamos que no nosso país as pessoas não meditam muito nestes assuntos, que as preocupações são com o dia a dia, que há em grande parte uma aceitação de tudo o que se está passando como uma fatalidade, um sentimento de que não é possível lutar contra esta maré...
Na sua opinião isso deve-se a quê? A uma incapacidade das forças progressistas para fazerem passar a sua mensagem, ou à existência do lado contrário de uma força tão grande que impede que essa mensagem chegue?
Julgo que se conjugam todos esses diversos factores, que há de facto uma pressão ideológica e psicológica enorme, uma verdadeira guerra psicológica que se desenvolve há décadas...
Hoje terá outros meios...
Tem os poderosíssimos meios da comunicação, utilizando as técnicas mais modernas e sofisticadas. Há uma pressão quotidiana sobre as populações, que se exerce quase desde o berço; se olharmos para a televisão, vê-se que os anúncios abrangem logo crianças da mais tenra idade. As crianças e os jovens são um terreno fácil de penetrar, uma vez que são um terreno praticamente virgem em todos os domínios. No nosso caso há também uma grande falta de preparação cultural. Não obstante o 25 de Abril ter trazido grandes conquistas nesse âmbito, com a modificação dos currículos escolares, com a generalização do ensino a toda a população, com a facilitação dos transportes, com o desaparecimento dos obstáculos que existiam à convivência entre rapazes e raparigas, etc., o que é certo é que o nível cultural continua a ser muito baixo, e não tem sido política dos governos constitucionais o fomento da participação popular. A que existe tem sido arrancada a ferros pelas forças políticas mais coerentes, mas não é uma política de Estado; a política de participação dos indivíduos na organização da sociedade não é uma política levada a cabo pelos governos, antes surge sempre em consequência de grandes pressões populares conduzidas pelas forças verdadeiramente democráticas, as forças no fundo que estiveram também na base daquela grande movimentação popular do 25 de Abril.
Das suas palavras pode-se retirar algum desencanto em relação à juventude de hoje?
Não, desencanto não. Lembro-me que no meu tempo as coisas não eram muito diferentes. Quem é que se interessava pelas questões políticas? Quem é que se interessava pela guerra civil de Espanha? Nesse tempo, quem estudava era sobretudo oriundo das classes mais abastadas, da pequena e média burguesia. Hoje, graças ao 25 de Abril, o ensino foi estendido a todos os extractos da população. Simplesmente, as condições em que os alunos frequentam o ensino são muito diferentes em função da sua origem de classe. Ou seja, à democratização do ensino não corresponde de forma automática uma extensão da própria formação cultural e, em idades mais avançadas, da formação política. Toda a política dos governos, tal como dos meios de comunicação social dominantes, é conduzida para a não formação política dos jovens e consequentemente da população portuguesa. Por isso mesmo a generalidade da população não compreende estas relações económicas e sociais que estão presentes com o fenómeno da globalização, e é facilmente ludibriada com estas pretensas intervenções humanitárias externas, por exemplo. Penso que isso se deve, por um lado, à pressão dos meios que as classes dominantes têm hoje ao seu dispor para influenciarem a sociedade - já o Marx dizia que as ideias dominantes são as ideias mais generalizadas na sociedade -, e por outro lado há uma dificuldade muito grande de os sectores mais esclarecidos e mais combativos exercerem a sua acção porque ela está em oposição a todo esse domínio dos interesses transnacionais que se procura instalar no mundo e que depois são traduzidos por miúdos nas coisas da vida quotidiana.
Mas é curioso verificar que, apesar de tudo, se continua a invocar valores morais para convencer as pessoas da bondade de intervenções transnacionais, como por exemplo a intervenção no Kosovo, o que significa que esses valores continuam a ter um papel importante na nossa sociedade...
Todas as
pessoas têm valores, a questão está em saber que valores são
esses. Há valores que são mais percepcionados, mais
directamente compreendidos, e outros que o não são tanto.
Compreender as relações que existem entre o económico, o
social e o político é muito mais complexo do que compreender
que se deve respeitar a vida humana, que deve haver solidariedade
entre os homens, etc., etc., etc..
No que se refere à juventude, para voltar à questão anterior,
o que verificamos é que existem agora muito mais solicitações
do que no passado. A intensificação da expansão capitalista,
que está intrinsecamente ligada ao consumismo, tem um alvo
preferencial na juventude. Do ponto de vista dos valores, penso
que no essencial a juventude prezará os mesmos valores...
julgará talvez que a liberdade é um direito adquirido,
absolutamente inquestionável. De certa maneira os jovens,
sobretudo os que pertencem às classes menos favorecidas, vivem
em condições verdadeiramente agrestes; é uma ilusão, e muitos
não o compreendem, o acesso às discotecas, ao grande consumo, a
certas relações, porque isso não é libertador, antes pelo
contrário, é condicionante. Fica a faltar tempo para pensar,
para meditar...
Há excesso de apelos para o que não é essencial...
É isso. Apelos é um bom termo. Aparentemente existe mais liberdade, e aparentemente também, com todos os novos meios, como a internet, é mais fácil o acesso à cultura, à instrução, à autoformação, mas por outro lado os apelos, as solicitações para caminhos que eu penso que não são os mais correctos mas que são certamente sedutores, contrariam toda essa abertura e todo esse aumento de condições para uma formação ligada à preservação dos valores que são essenciais para a dignidade humana.
Neste contexto, como é que os valores intrínsecos do 25 de Abril podem ser defendidos e transmitidos?
Quanto a mim, os valores do 25 de Abril são valores perenes, não são só característicos do 25 de Abril, são valores da humanidade. A sua defesa e transmissão tem que ser feita na prática quotidiana... Por exemplo, agora assiste-se a uma grande luta pelo trabalho com direitos, com qualidade; dantes não se falava nisso, insistia-se só no direito ao trabalho. Esta mudança deve-se por um lado ao desenvolvimento tecnológico, e por outro lado à existência de um conceito de dignificação do próprio homem, que o leva e exigir um trabalho que esteja ligado à sua dignidade, ao direito à sua realização pessoal. Essa exigência é também um combate ao desprezo pela pessoa humana que está ligado ao trabalho sem qualidade. E falar de qualidade é falar de segurança, de salário, de desenvolvimento, de formação... Pelo menos nos sectores mais esclarecidos e combativos das nossas classes trabalhadores, essa exigência de um trabalho com qualidade corresponde a uma evolução da sua consciência política.
Houve uma altura em que se acreditou que a evolução da ciência e da técnica iria ser utilizada para a libertação do ser humano e não para uma ainda maior exploração... Acredita que isso venha a acontecer?
Depende do
próprio homem. Tudo está ligado à correlação de forças. A
que hoje predomina é favorável aos detentores dos grandes meios
de produção, do poder económico, do poder militar. Para
inverter esta situação, quanto a mim, é preciso antes do mais
consciencializar, mobilizar, levar as pessoas a lutar por uma
vida diferente. Mas para isso é necessário que as pessoas
estejam convictas, o que implica a existência de razões de
ordem material, ligadas ao seu quotidiano, mas também razões de
ordem cultural. Importa que se tenha a consciência de que o que
se passa no dia a dia é expressão de qualquer coisa mais
profunda que existe nas relações entre os homens, ou seja, não
deixar que o raciocínio fique à superfície. Lembro-me que
quando era pequenino a minha mãe me dizia que sempre houve ricos
e pobres, que toda a vida houve patrões e empregados... O que é
preciso é não deixar ficar por aqui o raciocínio e levar as
pessoas a compreenderem que é possível uma outra sociedade, uma
outra organização social.
Sem uma modificação da correlação de forças isso não será
possível. Aparece para aí muita gente a dizer que precisamos de
um novo projecto de esquerda, de um novo Marx, e coisas do
género, mas o que é preciso é sobretudo fazer compreender às
pessoas que esta situação não é uma fatalidade, que as
antigas e velhas esperanças dos homens - e digo velhas porque
já entre os gregos e os romanos se aspirava a uma sociedade
diferente - se podem tornar realidade.
Continuo a pensar que o conhecimento humano poder ser libertador.
A humanidade já passou por períodos graves na sua história, de
muito sofrimento, e sempre foi capaz de os ultrapassar. Hoje, no
seio da humanidade, não obstante tudo o que se passa, desde a
derrocada do bloco socialista, ao domínio do grande capital e
tudo o mais, há forças que lutam por outra sociedade.
O 25 de Abril trouxe-nos um grande direito, o direito de voto. O
que precisamos é de votar bem, votar conscientemente, de maneira
esclarecida, o que naturalmente exige muito trabalho de
formação.
No entanto, muitos partidos com tradições de esquerda parecem actualmente apostados apenas no poder pelo poder...
É uma
realidade. Mas vê-se ao que estão reduzidos partidos que foram
fortíssimos na Europa, como o Partido Comunista Italiano ou o
Partido Comunista Francês. Penso que deixaram de ter aqueles
ideais de libertação do homem que os caracterizavam e que, face
aos acontecimentos das últimas décadas, à derrocada da União
Soviética, etc., deixaram de acreditar na possibilidade de
instaurar um sistema que acabe com a exploração do homem pelo
homem, e que o caminho a seguir é aceitar o que existe e
procurar dentro do que existe fazer o melhor possível. Isto
admitindo que estas serão as boas intenções, porque como se
sabe os políticos ou são movidos por ideais ou por ambição de
poder pessoal ou pelo dinheiro.
Na minha opinião, o que essas mudanças significam é que não
havia uma grande consciência política dentro desses partidos...
Ou pelo menos que a foram perdendo...
Exactamente.
E que as próprias direcções a deixaram perder. Se dentro
desses partidos estivesse bem enraizado o ideal socialista, o
ideal comunista, não teriam chegado ao ponto a que chegaram.
Creio que isso corresponde também a debilidades desses partidos,
que terão a partir de certa altura encaminhado mais os seus
horizontes para conquistar votos do que para conquistar
consciências. É preferível não ter votos mas ter as
consciências firmes, inabaláveis, tanto quanto é possível ser
inabalável a consciência de um homem coerente.
Para mim, o exemplo desses partidos não se deve seguir. O que
estão a fazer traduz grandes deficiências no trabalho político
dentro dos próprios partidos, que levou à perda de
referências, o que é tremendo. As pessoas não têm todas a
mesma consciência política, a mesma formação política, mas
se tiverem referências podem agarrar-se a elas, e as
referências devem estar ligadas aos valores de que temos vindo a
falar.
Essa referência é que é a verdadeira luz ao fundo do túnel.