25 DE ABRIL SEMPRE!

O 25 de Abril e as nacionalizações

Por Sérgio Ribeiro


Após a guerra de 1939-45, a relação de forças sociais na Europa era favorável às forças democráticas, à classe operária e a todos os trabalhadores, e foi possível fazer prevalecer – em parte – o objectivo da satisfação das necessidades sociais sobre o objectivo do lucro privado. Para tanto, uma das condições foi a quebra do monopólio capitalista da actividade económica, quer nos Estados vencidos quer nos Estados vencedores do conflito. As nacionalizações democráticas foram um dos meios. As empresas nacionalizadas tiveram, assim, na sua origem, um papel progressista e foram uma das condições para o que veio a ser o que se chama, muito discutivelmente, o «modelo social europeu».

Mais tarde, o Estado, recuperado de forma lenta pelo poder económico privado, passou a utilizar o sector nacionalizado de forma totalmente inversa aos objectivos das nacionalizações, fazendo destas instrumentos de financiamento público de actividades privadas, instrumentos da acumulação do capital monopolista.
As nacionalizações então chamadas democráticas, desse momento e nessas condições, não alteravam a natureza do modo de produção, e estavam estreitamente ligadas à evolução do capitalismo e à luta de classes que neste se inscreve e que se tem de adequar a essa evolução. Por isso, não eram neutras. Nem nunca o serão, até porque nada o é...
A recuperação do controlo político pelo capitalismo monopolista transformou o sector nacionalizado num sector controlado pelo Estado, e assimilou-o a sector estatizado, logo, ao serviço de objectivos impostos à sociedade a partir da relação de forças sociais. E deve distinguir-se entre nacionalizações e estatização, permitindo esta o desenvolvimento de formas de intervenção do Estado na economia ao serviço dos interesses privados.

Em contrapartida, as nacionalizações democráticas implicam mudanças ao nível político que não só as promovam como permitam que os meios de produção e de troca determinantes da actividade económica sejam integrados em mecanismos em mecanismos que procurem a satisfação das necessidades sociais, através de uma crescente participação dos cidadãos em geral, e dos trabalhadores em particular, participação que deve ser considerada como uma necessidade essencial não-material.


A importância
da banca nacionalizada
(já então...)

Embora a importância do capital financeiro, relativamente ao capital produtivo (ou seja, a do capital que se aplica em actividades produtivas), fosse muito menor do que hoje é, já nessa fase a nacionalização dos bancos era considerada decisiva. Para o papel progressista das nacionalizações e para o que, depois, foi a recuperação destas como instrumento de recuperação capitalista.
Ainda que incompleta, a nacionalização dos bancos foi um passo importante, quer para a tentativa da sua gestão democrática, quer para que o circuito para-monetário e financeiro estivesse ao serviço do objectivo de fazer a actividade económica com a intenção, pelo menos em parte, de satisfazer as necessidades da população. Tal como, na fase sequente, de recuperação capitalista via estatização, a liquidez criada e drenada pelos bancos nacionalizados serviram para o financiamento das empresas capitalistas, sendo importante meio de financiamento público de actividades privadas.
Como se pode ler em textos que estudam esse período, «os principais dirigentes dos bancos (nacionalizados) estavam, em princípio, ligados, pelas suas origens, pelas suas concepções, pelas suas carreiras, à oligarquia financeira (e) detiveram a realidade do poder sobre as empresas nacionalizadas». Pelo que, não se tendo modificado a fisionomia geral dos estabelecimentos bancários, não tendo sido integrados num estruturado sistema empresarial do Estado, foram elementos decisivos na inversão factual dos objectivos das nacionalizações realizadas no pós-guerra.


Nacionalizações em Portugal
depois de Abril de 1974

A (re)leitura e o resumo de textos sobre as nacionalizações realizadas na Europa na segunda metade dos anos 40, pode ajudar a perceber as nacionalizações que, em Portugal, se concretizaram na sequência do 25 de Abril de 1974. O facto de Portugal ter feito parte dos Estados nazi-fascistas, a «habilidade» salazarenta com que o regime corporativo-fascista percorreu a guerra, a decorrente ajuda – sobretudo do «velho aliado» britânico – para que o fascismo mudasse qb para que, sem escândalo internacional, continuasse a ser fascista até 1974, fizeram com que as nacionalizações em Portugal, sendo expressão do «momento» da luta de classes, reflectissem também a evolução do capitalismo.
Quer isto dizer que o prolongamento forçado, violento (em que o eclodir da guerra colonial foi o sinal mais visível) de um regime obsoleto e repressivo, a resistência e a luta contra o fascismo e o colonialismo (que o PCP protagonizou), vieram a traduzir-se num movimento de mudanças mais profundo, revolucionário, e que, sem levar a nacionalizações socialistas que alterariam o modo de produção, fez com que as nacionalizações democráticas em Portugal, tendo obviamente a mesma raiz na relação de forças sociais, tivessem ido mais longe que as nacionalizações realizadas (e recuperadas) no pós-guerra europeu.
O que é importante negar, e não só em resposta à permanente campanha de calúnias contra o 25 de Abril e o movimento revolucionário, é que as nacionalizações tenham sido uma espécie de aventura revanchista, um acto irracional de vindicta de trabalhadores «à rédea solta» (com tudo o que de pejorativo tem a imagem). Não foram, evidentemente, «bacteriologicamente puras», no sentido de que terá havidos casos que hoje podem servir de argumentos falaciosos em apoio a essa campanha. Houve, decerto, excessos, que ficam como sendo o importante da «história» escrita ao serviço dos opressores, daqueles excessos – se e quando excessos são... – que não se perdoam aos oprimidos, e que serão inevitáveis, diria mesmo plenamente justificados, quando estes sacodem a contínua e continuada opressão, que é – sempre! – insuportável para quem a sofre, inaceitável por quem tenha dignidade.
As nacionalizações no Portugal de Abril foram, isso sim, decisões históricas a que as dinâmicas revolucionária e contra-revolucionária – a luta de classes! – obrigaram o poder político que reflectia, então, a relação de forças no terreno e no momento histórico.

Breve nota sobre poder económico e poder político,
revolução e contra-revolução

Em 1974, o poder económico em Portugal estava concentrado em 7 grandes grupos nascidos no fascismo, e este era sustentado pelo poder económico dos grupos que criara. Democratizar a sociedade portuguesa implicava, necessariamente, quebrar essa promiscuidade.
Tendo o movimento militar e popular tomado, pelo menos em parte, as instituições, o poder económico deixou de poder impor as regras do jogo e começou por aparentar (fazer de conta) que aceitava as novas regras políticas em gestação ao mesmo tempo que as procurava minar e moldar aos seus objectivos, aos seus interesses monopolistas de acumulação de capital.
O papel de António Spínola nessa tentativa de mistificação e de manipulação foi nuclear. Tendo talvez moderado reacções de imediata rejeição ao processo iniciado, pois ele até era – além de cavaleiro... – um «cavalheiro de indústria» com papel destacado, por exemplo, na criação da Siderurgia Nacional e, por isso, no grupo Champalimaud, Spínola sempre procurou imiscuir o poder económico na curso dos acontecimentos. A oportuna criação (em Agosto de 1974) do MDE/S (Movimento Dinamizador Empresa/Sociedade) é disso manifestação clara, e até seria descarada se afirmações de fidelidade ao 25 de Abril e a própria sigla, com um D ambíguo por sugerir democracia e um S ainda mais ambíguo porque sugeria socialismo que era o que toda a gente dizia ser, não quisessem esconder o rabo do enorme gatarrão que apenas (!) se propunha investir centenas de milhões de contos e criar centenas de milhares de postos de trabalho, assim financiando a «revolução» desde que ela seguisse o caminho que resultaria da vitória da «maioria silenciosa», politicamente – e contra-revolucionariamente – conduzida pelo senhor general Spínola.


A inevitabilidade
das nacionalizações

Pode, por isso, dizer-se que as nacionalizações resultaram inevitáveis uma vez que o poder económico e financeiro não aceitou o rumo dos acontecimentos e procurou sempre subvertê-lo e invertê-lo, por formas enviezadas ou directas, com falas mansas ou actos violentos. E resultaram, também, de não ter sido encontrada outra maneira de impor regras democráticas ao poder económico a não ser através do controlo desse poder, usado (e abusado) em sabotagem interna ou em fuga para, do exterior e no exterior, fazer contra-revolução. Como é natural (ou de sua natureza...) porque sua posição de classe.
As nacionalizações foram ditas democráticas porque pretendiam colocar ao serviço da nação, do povo, sectores da economia indispensáveis para que prevalecesse a satisfação das necessidades sociais sobre o lucro privado, e não intentavam estabelecer a propriedade social de todos, ou sequer da maioria dos meios de produção.
As dinâmicas em confronto tornaram indispensável que o Estado agarrasse as alavancas da economia para que os objectivos da actividade económica não fossem exclusivamente (monopolisticamente) os do monopólio capitalista da actividade económica, os do sector privado. Mas este não seria banido da actividade económica. Pelo contrário, até porque, além de se pretender anular a sua contribuição para a intervenção contra-revolucionária, o seu dinamismo, a sua acumulação primitiva, a sua capacidade de inovar e realizar eram entendidas necessárias para que a actividade económica cumprisse a função social de criar riqueza para satisfazer necessidades sociais e, por isso, poderiam ser muito úteis no projecto global.


Nacionalizar – então – o quê?

Naquele momento da evolução do capitalismo (derrocada do sistema monetário internacional, «crise do petróleo», desemprego a explodir), e estando os bancos ligados aos grandes grupos económicos e financeiros como peças fulcrais dos seus «puzzles», a banca era sector estratégico, como o eram alguns outros sectores relativamente bem identificados. A nacionalização desses sectores estratégicos correspondia a poder o Estado poder fazer os objectivos sociais, no interesses dos trabalhadores e do povo, prevalecerem sobre os interesses privados e egoístas.

Por arrastamento, houve empresas que só foram nacionalizadas por os grupos económicos e financeiros, particularmente os «seus» bancos, serem tão tentacularmente poderosos que dessas empresas tinham a propriedade.

Mas o que importa salientar é a instrumentalidade dessas nacionalizações, no contexto de uma «filosofia» e racionalidade de intervenção com a intenção de colocar a actividade económica ao serviço da nação e não de apenas alguns nacionais ou de grupos económicos que de alguns nacionais eram. Tal como a sua instrumentalidade perversa porque ao serviço do contrário para que foram realizadas.

As nacionalizações
no projecto constitucional

A Constituição de Abril de 1976 reflecte essa «filosofia» e racionalidade, um projecto que as nacionalizações, enquanto parte essencial de um sector público, deveriam servir. Nunca será demais insistir que a «constituição económica» consagrava três sectores: o público, o cooperativo e o privado, sendo o primeiro determinante ou motor. Mas se o sector público, que nasceu das nacionalizações que vieram acrescer o já não desprezável sector de intervenção na actividade económica herdado do fascismo, era fulcral, não menos fulcral era que fosse estruturado por forma a que pudesse cumprir o seu papel constitucional.Para o ilustrar, em definições e tomadas de posição levadas a papel com força de lei – e no respeito pelo outro «papel» que era a Constituição da República Portuguesa –, referem-se dois documentos. Um, emanado do ministro das Finanças Salgado Zenha, que definia a necessidade imperiosa de estruturação do «sector empresarial do Estado», fazendo-o passar de um amontoado de empresas nacionalizadas, algumas delas apenas por arrastamento, para um conjunto coerente que visasse cumprir o papel que a Constituição exigia que fosse o seu.Outro, o Plano de Médio Prazo para 1977-80, elaborado por um equipa de técnicos internacionais da OIT/ONU e da responsabilidade da Secretária de Estado do Planeamento do 1.º Governo Constitucional, Manuela Silva, que sublinhava ser o «sector empresarial do Estado» fundamental para concretizar a estratégia de emprego e necessidades essenciais, plano que o 1.º Governo Constitucional adoptou.
Foram para a gaveta. O SEE nunca foi estruturado. Bem pelo contrário. E a sua utilização pelo Estado, desde a gestão por gestores vindos e a prepararem-se para regressar ao privado, até ao esvaziamento do papel na condução da actividade, desde a utilização como financiador público de actividades privadas até às privatizações sempre em benefícios (por vezes escandalosamente «arranjadas») de grandes grupos financeiros, desde as «desnatações» até à actualíssima política de destruição do que dele pudesse restar e por parte de um ministro «double size» que, em tempos nem muito longínquos, fazia da estruturação desse «sector empresarial do Estado» a sua arma de arremesso contra quem não o defendesse suficiente ou como a prioridade das prioridades. As voltas que a vida dá ou os pinos que o Pina Moura...
O Plano de Médio Prazo para 1977/80, que deveria assentar nesse sector estruturado após as nacionalizações, e estruturante de uma actividade económica voltada, privilegiadamente, para a satisfação das necessidades essenciais e o emprego, e que foi aprovado pelo 1.º Governo Constitucional, teria sido atropelado pela célebre lei Barreto da contra-reforma agrária e ainda não chegou à Assembleia da República...


Porquê? E hoje?

Porquê? Porque aconteceu, europeia e adequadamente, o mesmo que acontecera no pós-guerra, trinta anos antes. Por razão ou em razão da relação de forças e dos «momentos» da luta de classes. Estatizaram-se as nacionalizações e sucessivos governos, sempre com o PS a ser parte determinante neles, serviram-se do sector público da economia para a contra-revolução, para financiar com fundos públicos o sector privado, até se devolver a este o que este quis recuperar e dele fora retirado para, por via das nacionalizações, ter funções ao serviço do todo colectivo.

Está-se, apenas, a lembrar passado, ou a lembrar passados separados por intervalos de trinta anos? Não! Hoje, quase mais outros trinta anos passados, o poder económico comanda o (aparente) poder político. Colocou-o ao seu serviço. Para aqui se chegar foram usadas, perversamente, as nacionalizações. As nacionalizações que o 25 de Abril trouxe como elemento fundamental – e tornado inevitável –, como condições e meios para um projecto coerente mas subvertido e interrompido. Projecto que, como reflexo de um «momento» da evolução do capitalismo e da luta de classes, é retomado em cada outro «momento» em que esta luta é levada à prática social. Não como cópia, mas com a riqueza de experiências vividas e a terem de se adequar às sempre novas condições em que essa luta se continua...


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1 - Por exemplo, no Dictionnaire économique et social, do Centre d’études et de recherches marxistes, editado em 1975 pelas Editions Sociales.

2 - Apenas a título de exemplificação e para lembrar nomes (que não se podem, aliás, esquecer porque depressa voltaram ou sempre estiveram presentes), citam-se: «grupo Champalimaud» e Banco Pinto e Sotto Mayor, «grupo CUF» e Banco Totta, e Aliança e outros, «grupo Conde da Covilhã» e Banco Borges & Irmão, «grupo Espírito Santo» e Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, «grupo Banco Português do Atlântico».

3 - No livro publicado pelo Bureau Internacional do Trabalho (BIT/OIT), sobre essa importante experiência, Employment and basic needs in Portugal, editado em 1979 e, mais tarde, timidamente - ou corajosamente?... - traduzido para português pela Fundação Damião de Gois, pode ler-se na introdução: «calcula-se que, após as nacionalizações, o sector público da economia cobre 25% do valor bruto acrescentado, 24% do emprego e 45% do investimento. Antes de 1974, os números eram de 12% do VAB, 18% do emprego e 18% do investimento. Em termos de output da formação do capital, a parcela do sector público mais que duplicou. Em termos gerais, pode dizer-se que o governo controla, assim, instrumentos decisivos para intervenção económica, sobretudo no que respeita à orientação e ao financiamento do investimento. A sua eficácia está, obviamente altamente influenciada pelo estabelecimento de um adequado sistema de planeamento». Que poderia ser aquele plano de médio prazo, se o governo (o primeiro governo constitucional, do PS sozinho, que o aprovou, mas que se «esqueceu» de o enviar para a Assembleia da República) o tivesse querido, ou podido..., tentar, se não tivesse enveredado pela opção de escrever cartas de intenções ao FMI para cumprir, obedientemente, a estratégia deste para os países em «situação difícil» em resultado da evolução das finanças ou, sobretudo, em riscos de se transviarem da ortodoxia capitalista.


«Avante!» Nº 1378 - 27.Abril.2000