Aconteceu

Correia da Fonseca

Morreu Carlos Pinto Co­elho. Não era um homem de es­querda. Du­rante a guerra co­lo­nial, em Mo­çam­bique, onde vivia desde a mais dis­tante in­fância, fi­zera o ser­viço mi­litar muito pró­ximo do ge­neral Kaulza de Ar­riaga. Re­gres­sado à então cha­mada me­tró­pole, havia sido ad­mi­tido como jor­na­lista no Diário de No­tí­cias graças aos fa­vores su­ces­sivos do mi­nistro fas­cista Franco No­gueira e do jor­na­lista/​em­bai­xador não menos fas­cista Au­gusto de Castro. Do Diário de No­tí­cias foi de­mi­tido de­pois do 11 de Março de 75 por se ter dei­xado en­volver numa ma­nobra contra-re­vo­lu­ci­o­nária exe­cu­tada contra o pró­prio jornal por um grupo de jor­na­listas de­sa­gra­dados da pró­pria Re­vo­lução. Con­tudo, por vir­tudes pró­prias e/​ou porque foi apren­dendo com o que os seus olhos viam e a sua in­te­li­gência en­tendia, Carlos Pinto Co­elho não era um homem de di­reita. Por isso a sua morte en­tris­teceu gente de todos os sec­tores ide­o­ló­gicos e po­lí­ticos, gente que já com ele se sen­tira so­li­dária quando, há uns anos, Carlos Pinto Co­elho foi ví­tima de um ver­da­deiro as­sas­sínio pro­fis­si­onal na sua qua­li­dade de te­le­jor­na­lista. Acon­teceu.

 

Um can­tinho na «2»

 

Carlos Pinto Co­elho surgiu, um dia, a fazer na te­le­visão pú­blica o que nin­guém al­guma vez fi­zera: um pro­grama diário de in­for­mação diária acerca da vida cul­tural por­tu­guesa que existia mas a RTP omitia. Para tanto, per­mi­tiram-lhe um can­tinho na RTP2 e uma equipa nu­me­ri­ca­mente li­mi­tada mas com­pe­tente, em­pe­nhada e isenta. E acon­teceu então o que quase pa­receu um mi­lagre: o pro­grama «Acon­tece» ga­nhou uma au­di­ência ines­pe­ra­da­mente ampla, não será ex­ces­sivo dizer que ga­nhou po­pu­la­ri­dade num País onde ne­nhum pro­grama de in­for­mação cul­tural havia sido po­pular, se é que al­guma vez ver­da­dei­ra­mente con­se­guira existir. Esse êxito devia-se em grande parte ao tom nada pre­sun­çoso que sempre o per­corria, a uma plu­ri­dis­ci­pli­na­ri­e­dade que nunca teve nada de pre­sun­çoso, a um grau de isenção ide­o­ló­gica que foi com­pa­tível, por exemplo, com um tempo de ho­me­nagem a Mário Cas­trim quando do fa­le­ci­mento do crí­tico de te­le­visão que ga­nhara a justa re­pu­tação de co­mu­nista ir­re­cu­pe­rável. Mas o pró­prio tom de Carlos Pinto Co­elho terá sido uma con­tri­buição de­ci­siva para o su­cesso do seu «Acon­tece». Porque Carlos Pinto Co­elho tinha um es­tilo pró­prio como fi­gura da TV, e esse era um es­tilo co­lo­quial, ines­pe­ra­da­mente des­ti­tuído de pre­sunção, um es­tilo como mais nin­guém tinha e con­tudo sem ves­tí­gios de ên­fase en­vai­de­cida, um es­tilo que o apro­xi­mava de cada um de nós como mais nin­guém antes dele con­se­guira. Carlos Pinto Co­elho es­tava no «Acon­tece» como que ao lado de qual­quer dos te­les­pec­ta­dores do pro­grama. E eram es­pec­ta­dores fi­de­li­zados, não meros tran­seuntes em zap­ping que por ali ti­vessem pas­sado. Acon­teceu.

 

O ódio an­tigo

 

Foi assim ao longo de uns sur­pre­en­dentes nove anos até que um dia, de sur­presa e apa­ren­te­mente à traição, o pro­grama foi ex­tinto e Carlos Pinto Co­elho foi as­sas­si­nado como te­le­jor­na­lista. O as­sas­sino tinha nome, cha­mava-se Mo­rais Sar­mento, era o mi­nistro que então tu­te­lava a RTP e veio pe­rante câ­maras e mi­cro­fones na ten­ta­tiva de jus­ti­ficar o crime com uma men­tira tão des­ca­rada e tão es­tú­pida que logo ali se viu a massa de que a cri­a­tura era feita. Para a sua feia acção, que convém não es­quecer até porque o su­jeito con­tinua a andar por aí por­ven­tura à es­pera de nova opor­tu­ni­dade, contou de­certo com cum­pli­ci­dades na pró­pria RTP, de­sig­na­da­mente do dr. Al­me­rindo Mar­ques, então pre­si­dente da em­presa.  De qual­quer modo, o certo é que o duplo as­sas­sínio, o do pro­grama e o do te­le­jor­na­lista, acon­teceu. Não chegou a ser apu­rada qual a mo­ti­vação ime­diata da bru­ta­li­dade, mas é plau­sível que tenha tido raízes no ódio an­tigo, ver­da­dei­ra­mente se­cular, que as classes do­mi­nantes e de facto anal­fa­betas nu­trem contra a cul­tura e tudo quanto cul­tura lhes pa­reça, re­ce­osas de que a cu­ri­o­si­dade cul­tural des­perte nos es­po­li­ados o in­te­resse pelo en­ten­di­mento das coisas, do mundo e da vida. Acon­tece. E agora, pe­rante a morte não de todo ines­pe­rada de Carlos Pinto Co­elho, pois ele ar­ras­tava nestes anos mais re­centes in­qui­e­tantes pro­blemas da área car­di­o­vas­cular, acon­teceu uma ampla co­moção entre mi­lhares que se ha­viam ha­bi­tuado a ad­mirar e mesmo a es­timar o autor do ines­que­cido «Acon­tece». Nunca um homem de TV apli­cado às coisas da cul­tura sus­ci­tara uma tão alar­gada sim­patia. Viu-se agora que Carlos Pinto Co­elho o con­se­guira. Viu-se agora, com tris­teza, que acon­teceu.



Mais artigos de: Argumentos

O «carola» – as formas contraditórias de uma função

O constante afirmado «apolitismo» do «carola» está em relação directa com o «sacrossanto» princípio da neutralidade política do desporto. Esta questão, já tratada tantas vezes, ainda exige ser esclarecida junto de muitos dirigentes que...

Mais e mais...

O primeiro-ministro, ao apresentar ao País o incrível «pacote das 50 medidas» (onde a barbaridade mais grossa propõe que os trabalhadores passem a descontar para «financiar» o seu futuro despedimento), considerou que, por causa de tal originalidade legislativa, «os...

Teoria e prática da Caridade

Se os órgãos responsáveis do Estado continuarem a impor as actuais políticas, adeus direitos dos trabalhadores, adeus sonhos de democracia e… adeus derradeiras sombras dos velhos mitos da independência nacional. Dizem os grandes senhores que o simples cidadão deve acatar as...