«Muitos e muitas não querem um Brasil onde sejamos “os lobos de nós mesmos”»

Hugo Janeiro
EN­TRE­VISTA Ma­nuela D'Ávila é pré-can­di­data do Par­tido Co­mu­nista do Brasil (PCdoB) à pre­si­dência do País. A mais jovem de sempre, as­si­nale-se. De pas­sagem por Por­tugal foi a pro­ta­go­nista de um de­bate na Casa do Alen­tejo, em Lisboa, teve um en­contro ofi­cial com o PCP e con­cedeu ao Avante! uma en­tre­vista em que su­blinha as ra­zões da sua pré-can­di­da­tura.

O golpe de Es­tado de 2016 en­cerrou um ciclo e abriu outro

Porque é que o PCdoB de­cidiu apre­sentar um pré-can­di­dato à pre­si­dência do Brasil?

Não apre­sen­tá­vamos um can­di­dato pró­prio há 70 anos. Nos úl­timos pro­cessos elei­to­rais es­ti­vemos com Lula [da Silva] e Dilma [Rous­seff]. A questão do mo­mento no Brasil é a ju­di­ci­a­li­zação da po­lí­tica e o ataque à de­mo­cracia, de­sig­na­da­mente o es­forço que o apa­relho ju­di­ciário, apoiado pela co­mu­ni­cação so­cial, está a fazer para que Lula da Silva não seja can­di­dato. Está em causa a pos­si­bi­li­dade de o povo de­cidir os seus re­pre­sen­tantes e des­tino.

Porém, também con­si­de­ramos que este é o mo­mento de de­bater a saída para a crise no Brasil. O golpe de Es­tado de 2016 en­cerrou um ciclo e abriu outro. Esta é a opor­tu­ni­dade para dis­cutir o fu­turo

Mas porque é que o PCdoB en­tende que esse de­bate exige um pré-can­di­dato pró­prio?

Porque é ne­ces­sário pro­jectar pro­postas con­cretas para o Brasil. O pre­si­dente Lula da Silva tem ne­ces­sa­ri­a­mente de se con­cen­trar na sua de­fesa, na rei­vin­di­cação da pos­si­bi­li­dade de con­correr. Ora, neste ce­nário, os co­mu­nistas bra­si­leiros não podem ficar re­féns de um de­bate que vai girar à volta da pre­sença ou au­sência de Lula da Silva no bo­letim elei­toral. Isso seria fazer o jogo da di­reita, deixá-la à von­tade para apre­sentar as suas «re­ceitas» sem con­tra­di­tório e de­núncia.

Nos úl­timos anos foi pos­sível re­tirar 36 mi­lhões de bra­si­leiros da po­breza, mesmo não en­fren­tando ques­tões que estão na base das de­si­gual­dades so­ciais. Se por um lado não po­demos ter uma lei­tura sim­plista sobre a acção dos go­verno de Lula e Dilma – in­cor­rendo no erro de des­con­si­derar a cor­re­lação de forças – por outro é pre­ciso abordar as re­formas de que o país ne­ces­sita, as quais serão tanto mais ra­di­cais quanto mais formos ca­pazes de cons­ti­tuir uma ampla frente so­cial que reúna vá­rios sec­tores por uma ideia de fu­turo.

Por exemplo: somos um país cuja base de tri­bu­tação as­senta no con­sumo, ou seja, não ta­xamos grandes for­tunas. Es­ta­be­lecer uma tri­bu­tação pro­gres­siva, no nosso con­texto, já é uma pro­posta ra­dical.

Ou­tros casos são o ataque à le­gis­lação la­boral e o con­ge­la­mento dos in­ves­ti­mentos pú­blicos, im­postos pelo go­verno gol­pista de Mi­chel Temer. De­fender e apro­fundar os di­reitos la­bo­rais e so­ciais é uma ideia avan­çada de país, como o é de­bater o papel da in­dús­tria na­ci­onal e do Es­tado na pro­moção da pro­dução so­be­rana.

As ques­tões da ha­bi­tação, das infra-es­tru­turas, mo­bi­li­dade ur­bana e trans­portes ou da terra também estão na agenda da sua pré-can­di­da­tura?

Um plano de grandes in­ves­ti­mentos que lhes dê res­postas com cer­teza que tem de en­trar na equação. Quanto ao tema da terra, no pós-golpe este ga­nhou no­va­mente a di­mensão da vi­o­lência. Essa con­fli­tu­a­li­dade tem-se es­ten­dido às ci­dades en­vol­vendo aqueles que não têm casa.

Mas há ou­tras ques­tões im­por­tantes. No Brasil temos cerca de 12 mi­lhões de de­sem­pre­gados. Um quarto dos jo­vens não es­tuda nem tra­balha. Cerca de 60 mil bra­si­leiros, so­bre­tudo ne­gros (40 mil até aos 29 anos), são mortos todos os anos. Então a pre­ca­ri­zação do tra­balho tem de ser de­ba­tida, como tem de ser de­ba­tida a se­gu­rança pú­blica.

Na úl­tima dé­cada su­bes­ti­mámos o peso que a in­se­gu­rança tem na vida das pes­soas. Hoje é evi­dente que a vi­o­lência também é ge­ra­dora de de­si­gual­dades so­ciais. Um jovem que seja preso não en­contra um em­prego formal. Uma mu­lher que perca o ma­rido ou um filho no trá­fico será sempre es­tig­ma­ti­zada.

O facto de ter sido ve­re­a­dora em Porto Alegre ajuda-a a abordar esses fla­gelos do quo­ti­diano ur­bano?

Per­mitiu-me con­tactar e ter uma visão quase no­minal do drama das mães que perdem os fi­lhos para o nar­co­trá­fico, para onde foram em­pur­rados por au­sência de opor­tu­ni­dades. Creio que me ajuda, sim.

E ser jor­na­lista per­mite-lhe olhar de forma mais subs­tan­tiva para a de­mo­cra­ti­zação dos meios de co­mu­ni­cação so­cial, que tem sido fa­lada no con­texto do pro­cesso contra o ex-pre­si­dente Lula da Silva?

Nunca demos a cen­tra­li­dade de­vida à forma como fun­ci­onam os meios de co­mu­ni­cação so­cial no Brasil. O golpe fez-nos per­ceber a im­por­tância de re­gu­la­mentar a sua acção, cum­prindo, aliás, o que diz a nossa Cons­ti­tuição, na qual o mo­no­pólio dos media é proi­bido.

O facto de ser a pré-can­di­data mais jovem de sempre à pre­si­dência do Brasil tem van­tagem na re­pre­sen­tação dos jo­vens bra­si­leiros?

Tenho essa obri­gação. Que pers­pec­tiva tem um jovem que não en­contra outra al­ter­na­tiva que não seja tra­ficar droga para so­bre­viver, ou aqueles que têm for­mação mas não en­con­tram um em­prego de­cente? Como eu, muitos e muitas não querem um Brasil onde se­jamos «os lobos de nós mesmos».




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