Fedra e o desejo

Domingos Lobo

A mulher continuava a ser olhada como uma tentação, um demónio

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Fedra, na versão clássica de Jean Racine, expressa os limites morais do desejo feminino e o impacto que o debate sociológico em torno dos costumes teve na França do século XVII. O corpo, o corpo da mulher, era tratado pelas normas vigentes, pela Igreja sobretudo, com circunspecção, sob o preceito de que corpo e alma constituíam uma união indefectível1. A mulher continuava a ser olhada como uma tentação, um demónio, pecaminoso apelo aos que se deixassem tocar e seduzir pela impureza dos corpos. Podiam as prostitutas tomar banho três vezes ao dia que seriam consideradas sempre mulheres sujas.

Para além de proscrito, os apelos do corpo, as vibrações dos sentidos, o desejo sexual se insinuado pela mulher era considerado um acto subversivo, transgressor, intolerável por uma Igreja que sobre si-própria se fechava. De igual modo, os poderes acautelavam os costumes, punindo os transgressores, por não terem sabido discernir, na sombra dos enternecimentos, a fronteira entre o prazer e o proveito.2

Quando Fedra, esposa de Teseu, rei de Tebas, revela a Enone, a sua confidente, estar apaixonada pelo enteado, Hipólito, está a transgredir, a rebelar-se contra as normas instituídas. Ao revelar a sua natureza sem temor aos deuses, confessando o amor que não pode mais esconder, que a sufoca até ao desespero, mesmo tendo consciência de que esse amor é incestuoso, Fedra está a condenar-se. Mas é da natureza de quem ama ser incauto, e Fedra, julgando Teseu morto em combate, dirá a Hipólito da sua paixão. Amor que Hipólito rejeita com veemência e asco, por entender esse facto uma traição intolerável a Teseu, seu pai, que afinal regressa vivo e sano. Fedra irá, com esse acto, desencadear a tragédia e esta consumar-se-á.

No teatro de Corneille e no de Racine encontramos duas formas antagónicas de abordagem interpretativa dos complexos conflitos religiosos e morais que atravessaram o século XVII francês, de entender e expressar filosoficamente esses fenómenos: Corneille induzindo o primado da natureza humana sobre os comportamentos; Racine impondo a necessidade de punir aqueles que, traindo os princípios, pretendem controlar o seu próprio destino. A Fedra de Racine terá que ser lida à luz dos seus conceitos religiosos e éticos.

A magia acontece

O jovem e talentoso encenador Manuel Jerónimo pega no texto de Racine, expurga-o da estrutura clássica e relê-o segundo a visão que hoje temos do mundo e dos extremos românticos da paixão. É o desejo edipiano de Fedra por Hipólito, essa atracção fatal, que sobreleva a tragédia, a transgressão das pulsões eróticas, dos irracionais frémitos do corpo, que estão presentes nesta versão, magnífica, que o Intervalo – Grupo de Teatro, há muito dirigido por Armando Caldas, nos dá a ver no seu espaço de Linda-a-Velha, até final de Março.

Manuel Jerónimo, depois de encenar a Ilusão Cómica e Sonho de Uma Noite de Verão, peças que constituíram grandes êxitos do Grupo, constrói com esta Fedra de Racine um espectáculo inesperado e tocante. Inesperado, pela despojada concepção cenográfica com que o encenador organiza o espaço. Tocante, pela forma como o texto de Racine é na essência respeitado, nos contornos mais expressivos, no modo como os actores enfrentam esse fala difícil, extensa e dúctil, sem uma falha, uma quebra de intencionalidade, sem excessos mesmo quando a distanciação interpretativa impõe outros sinais, o rigor está lá e a magia acontece.

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1 Jean-Paul Aron, O Pénis e a Desmoralização do Ocidente, Vega, Lisboa, 2000

2 idem




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