Sinais de esperança
Por Francisco Costa
«Os Principais», «A Cadeira do Poder», «Lições do Tonecas», «Os Malucos do Riso», «Nós os Ricos», «Clube Vip», «Jet 7», «Ponto de Encontro», «Isto Só Vídeo», «Big Show SIC» ou «Lélé e Zequinha» - para apenas mencionar, sem se ser exaustivo, alguns dos mais notórios e obecessivos objectos televisivos ditos de «entretenimento» ou de «divertimento» que têm usurpado com inaudito despudor e mau-gosto as honras do «horário nobre» - pareciam constituir em definitivo, desde há muitos meses e até há pouco tempo, a fatalidade das únicas escolhas possíveis que, na matéria, eram oferecidas ao espectador de televisão pelos nossos dois principais canais generalistas. Até que, há dias, se começou de novo a vislumbrar alguma luz ao fundo do túnel. Ténue, ainda, mas alimentando alguns sentimentos de esperança.
Naturalmente que o leitor já percebeu que me refiro, hoje,
ao ressurgimento em «horário nobre» de mais um programa
oriundo dos talentos multifacetados de Herman José - ao
que parece, ainda e sempre personificando (na demonstração,
aliás, de alguma falta de imaginação e alternativas por parte
dos responsáveis televisivos) aquela réstea de esperança a que
o espectador é suposto de vez em quando agarrar-se para aspirar
a momentos de diversão televisiva não exclusivamente
idiotizantes. Se a esperança irá transformar-se em realidade
positiva é coisa que só o futuro ajudará a confirmar, mas a
transmissão de dois episódios de «Herman Enciclopédia»
desde já tornam possível tentar antecipar, nas suas grandes
linhas, algumas pistas de entendimento.
Saber rentabilizar uma equipa
Ninguém é capaz nos nossos dias de supor ou acreditar não só hoje, mas desde há muito, muito tempo, e não apenas neste rectângulo à beira mar plantado como em todas as latitudes e longitudes que um programa de televisão ou de rádio, centrado no carisma de um único condutor protagonista, saia completamente da sua imaginação e muito menos da sua pena, por maior que seja o talento com que se nasceu ou se soube construir e alimentar através de porfiado e exaustivo estudo e trabalho. Assim, sempre que Herman José procurou inteligentemente rodear-se, mais ou menos na sombra - quer ao nível das potencialidades imaginativas, quer ao nível da sua concretização prática - de nomes de «criativos» que alimentavam com textos ou pequenos excertos de rábulas mais ou menos elaboradas, as suas grandes ideias e traços iniciais, logo se sentia que as coisas tinham quase sempre «pernas para andar».
Por um lado, estava assegurado todo um manancial de dispositivos à partida susceptíveis de construirem, primeiro, um esboço de organização e, depois, uma planificação mais cuidada já em função dos meios técnicos disponíveis ou exigíveis para, finalmente, se alcançar um resultado final que (nos melhores casos) surgia quase sempre sob a forma de um produto fluente e aparentemente escorreito em todas as suas fases, como se pouco ou nada tivesse sido limado ou boleado.
Por outro lado, o grande segredo residia, então, por parte da personalidade criativa última (o próprio Herman José) na sabedoria de coordenar, dirigir e concretizar certamente com grande sentido de risco e imprevisibilidade, mas sempre partindo e apoiando-se numa enorme e profissional capacidade de cálculo e meticulosidade face à criação dos derradeiros efeitos - todos estes dispositivos à sua disposição, em ordem a dar-lhes um cunho pessoal indesmentível e a transmitir-lhe aquele rasgo de que só os grandes talentos são capazes. Temos, assim, que nos seus melhores tempos, Herman era capaz de tudo isto e muito mais e, por isso, se revelou um caso sem dúvida incontornável em termos de criação televisiva e não só.
Não vale a pena, agora, voltar a insistir na desilusão que foi constituíndo para os seus admiradores e para a própria crítica a progressiva degradação da capacidade criativa a que nos últimos anos nos foi penosamente sujeitando o mesmo Herman, em lamentável espectáculo e exibição de um misto de facilidade, preguiça, desprendimento e esgotamento imaginativos, no fundo consubstanciando um enorme desprezo pelas suas próprias qualidades natas, e ainda por cima procurando desesperadamente inventar, do mesmo passo, toda a espécie de inconsistentes e ilusórios álibis.
A crise estava instalada e a retirada, mais ou menos assumida, impunha-se. Mas ela deixara marcas profundas e, pior do que isso, dera origem à criação de um outro tipo de máquina de produção menos controlável e de outras estruturas menos cuidadas e rigorosas que passaram a alimentar e a empacotar de forma desregrada e grosseira outras (supletivas) formas de intervenção pública susceptíveis de alimentar os apetites incontroláveis do principal interessado, quer sob a forma de desleixadas e corriqueiras crónicas de imprensa, quer sob a forma de desbragados espaços radiofónicos, cada vez mais invadidos pela ordinarice mais rasteira e traiçoeira.
Saber escapar ao domínio da «máquina»
Não é assim de estranhar que tudo o que de imensamente positivo tem alimentado o talento, dir-se-ía inesgotável, de Herman José (competente e profissionalmente construído ao longo dos anos) como tudo aquilo que tragicamente é negativo e ao mesmo tempo o tem ofuscado, com imparável rapidez, nos últimos tempos da sua carreira, se reflicta agora no novo produto televisivo com que teve a coragem de reaparecer. E saúde-se, em primeiro lugar, os renovados orgulho e profissionalismo que lhe permitem dizer de novo «presente»!
Tantos nos pormenores formais como nos aspectos de conteúdo, há motivos para aplauso e razões para reticências, o que não é de estranhar. Comecemos pelos primeiros. E, aqui, sem dúvida que é de destacar, em primeiro lugar, a concepção e design do genérico do programa (com as citações, adaptadas ao meio português, do multifacetado e camaleónico Zellig de Woody Allen) e, ao mesmo tempo, a própria forma como é aproveitada a iconografia própria das novas tecnologias há pouco emergentes e já hoje amplamente instaladas, como são a interface do CD-ROM ou da página da Internet, com menus a desenrolarem-se em cascata ou hiperlinks dando acesso a «páginas» diversas do programa, numa espécie de interactividade bem imaginada e potencialmente funcional. Também os cenários, em particular, e o desenho geral da produção nos fazem recordar os melhores exemplos de anteriores programas de Herman José.
Mas nem tudo consegue ser perfeito. Precisamente, na aparente ânsia de inovação e adaptação à nova iconografia que nos rodeia e ali está sempre presente, o programa cai frequentemente num certo caos organizativo que nada tem a ver (antes pelo contrário) com a antiga e saudável atmosfera caótica, mas artisticamente controlada, que constituía o melhor Herman do antigamente. Assim, nem sempre chega a ser assumido ou levado até ao fim o corte súbito para tal ou tal cena que surge inserida pelos já mencionados mecanismos de interactividade o que demonstra alguma falta de controlo e certos resquícios de preguiça face à concepção da matriz do programa, em termos de planificação antecipadamente conjecturada. Daí resultam sequências desgarradas que não têm continuidade e que se perdem em termos de timing, ordenação e duração interna, como é o caso da inserção de determinados vocábulos da enciclopédia que não chegam a ser explorados nas suas potencialidades ou, entre várias outras, das cenas do elevador no primeiro programa ou das do Vitor de Sousa Show, não completamente assumidas e rentabilizadas. E é aqui que se nota ainda a insuficiência, por parte de Herman, do controlo (positiva e criativamente encarado) de uma «máquina» que parece por vezes deixar funcionar em roda livre e se revela uma certa falta de capacidade auto-crítica que imporia, por exemplo, o desaparecimento da figura do Estebes, já esgotada e irremediavelmente pertencente ao passado. Também potencialmente perigosa porque dando rédeas largas ao risco de resvalar de novo para a ordinarice, bem dispensável porque tão esgotada noutros contextos - é a introdução do programa, posterior ao genérico, com Herman a dirigir-se ao publicozinho presente no estúdio, um pouco à maneira de um Jay Leno lusitano, ainda por cima de baixa extracção.
Momentos de antologia
Do lado positivo, os primeiros dois episódios da nova série são já largamente prenhes de novos momentos de antologia televisiva neste domínio. Para além da insistência (essa sim bem-vinda) de um dos melhores «bonecos» jamais criados por Herman José em televisão e que é consubstanciada nas intervenções pontuais de uma personagem cujos tiques não podemos deixar de associar ao simpático e generoso Carlos Pinto Coelho tivemos já outros achados verdadeiramente surpreendentes e reconfortantes, que aqui relembro não necessariamente por ordem cronológica ou de importãncia relativa: as duas sequências da chamada «Expo 97», com as reuniões na cave da adega e as figuras admiravelmente ali compostas, bem como a utilização, em arremedo de inacreditável senha, da expressão «Nós só queremos ver Lisboa a arder!»; a surrealista referência a um tal Jorge Pimba Marreta e aos «Telecutecu», misturando as referências a Ana Faria e aos «Queijinhos Frescos» com Stockhausen, Vivaldi e uma nova versão arrazadora, electrónico-concreta, das «Quatro Estações»; o «Campeonato Mundial das Danças da Chuva» na Sociedade Recreativa Borda d Água; a bandalheira de «Big Show Chic»; o gozo incontido ao «Tele-Vendas», com as figuras impagáveis de Melga e Mike; e, sobretudo, as sequências irresistíveis da Casa de Fados de Gilberto Desgraçado (no primeiro programa) e da «Herman Geographic Magazine» (no segundo programa) - esta com a intervenção de uma sussurrante personagem-misto-David Attenborough-Peter Ustinov, dobrada em «português-brasileiro» à maneira do «Travel» da TV Cabo para já não falar da impagável invenção da figura do Provedor da Enciclopédia, o «Diácono Remédios», ou das imitações das figuras de Teresa Salgueiro, Miguel Ângelo e Amália (!!!) no Coliseu, no Canecão ou no Metropolitan (!), dizendo «obrigada, obrigada», em várias línguas, ou de Lauro António com o seu linguajar cinematográfico, em «versão original» sem legendas!
Enfim, um destaque justo e indispensável vai, ainda, para o excepcional naipe de intérpretes de que Herman soube voltar a rodear-se com relevo para as prestações de caras mais conhecidas como as dos notáveis Maria Rueff, Miguel Guilherme ou José Pedro Gomes, mas sem esquecer revelações como Alice Pires ou João Didelet.
Em resumo, sem embandeirar em arco, «Herman Enciclopédia» pode voltar a ser o programa de entretenimento por que há tanto ansiávamos. Oxalá o seu responsável não deite tudo a perder!