Os números
«Para nós, os portugueses não são números, são pessoas». Se a memória não falha, era isto que constava nuns placares gigantes com que o PS inundou o país uns tempos antes das últimas eleições para a Assembleia da República. O próprio secretário-geral do partido e actual primeiro-ministro, António Guterres, deu cara à afirmação, que de resto não se cansou de repetir em todas as suas intervenções públicas, o que não terá deixado de contribuir para o epíteto de 'picareta falante' com que em hora de inspiração e boa dose de dor de cotovelo alguém o baptizou. Passada a campanha eleitoral, há que reconhecê-lo, as coisas mudaram. Não só Guterres moderou a verve metendo a viola no saco, como soe dizer-se - mesmo quando seria desejável que viesse a público pôr alguns pontos nos iis -, como, sobretudo, passou a olhar para os portugueses com outros olhos.
Influências de Bruxelas, dirão uns; miopia política, afirmarão outros; mera lógica eleitoralista, garantirão muitos. Seja como for, a verdade é que os números invadiram o discurso e a práxis do governo PS. Começou com os 'jobs for the boys', avançou com as alianças à direita para viabilizar orçamentos, evoluiu com os avales da concertação social, e tem a sua mais recente expressão na polémica da taxa de desemprego.
Que o INE divulgue números, não é de espantar. É a sua função. Que os números divulgados pelo INE tenham leituras diferentes, é natural. Tudo depende do significado que se lhe atribui, e ninguém ignora que a realidade estatística que põe cada um de nós a consumir uns quantos litros de tintol por ano contém em si a verdade verdadinha de que alguém anda a abotoar-se com o 'nosso' vinho.
O estranho é que o primeiro-ministro e a ministra do Trabalho percam a tramontana com os números e venham a terreiro clamar contra as obscuras forças de bloqueio apostadas em denegrir a sua imagem com interpretações numéricas. E isto porque, a ser verdadeira a asserção de que «os portugueses não são números, são pessoas», pouco importa qual a definição oficial de desempregado cozinhada em Bruxelas para de uma penada fazer baixar as estatísticas para valores menos escandalosos, ou ainda as diferenças técnicas entre desempregados e inactivos.
Tecnicamente, uma pessoa trabalhando um dia por semana não é um desempregado, ainda que o rendimento daí proveniente seja pouco mais que nada. Mas como é que essa pessoa - que não é um número - pode comer todos os dias? Ter uma vida decente? Confiar no futuro? Acreditar no Governo e na sua política?
Tecnicamente, um inactivo - tão inactivo e desmobilizado que já nem acredita valer a pena inscrever-se num Centro de Emprego, se é que tem meios para lá chegar - não é um desempregado. Mas se este inactivo não é um número, mas uma pessoa, como é que...
Recolher louros pelos números pode ser gratificante em aerópagos internacionais onde há muito o negócio é números, mas é certamente insuficiente para dar resposta às necessidades prementes das pessoas que ainda não descobriram como encher a barriga com resultados estatísticos.
Mais de 700 mil portugueses desempregados pode não ser uma realidade tecnicamente correcta. Mas é uma realidade terrível. É de pessoas que se trata, não de números. Isso, sim, é politicamente incorrecto.
AF