AR



Lino de Carvalho sobre a Delimitação de Sectores, hoje em debate


Entregar aos capitalistas
o melhor do património



O Governo leva hoje ao Parlamento mais uma peça inserida na sua estratégia de privatização da economia. Trata-se de uma proposta de lei de delimitação de sectores, visando, nos seus objectivos, em síntese, a entrega dos sectores rentáveis da economia aos grandes grupos capitalistas. Num quadro em que são estes os únicos beneficiários e do qual resultam simultaneamente elevados custos para o País, tal operação, expoente da sua fúria privatizadora, vem revelar com singela clareza até que ponto chegou o enfeudamento do PS às teses económicas neoliberais.
Desta realidade nos fala o deputado comunista Lino de Carvalho, em entrevista ao "Avante!", concedida nas vésperas do debate, e no decorrer da qual, entre outros temas, vieram a lume as ilusões e o logro que se escondem por trás das campanhas publicitárias que anunciam os processos de privatizações.



Como caracterizas, em traços sumários, a presente proposta de lei de delimitação dos sectores?

O traço mais significativo, no plano político, desta proposta de lei do Governo do PS é o de concretizar, ao nível da delimitação de sectores, as orientações económicas neoliberais e a fúria privatizadora do Partido Socialista.

É verdade que a actual Lei de Delimitação de Sectores - a Lei nº 46/77 de 8 de Julho de 1977 - após as alterações introduzidas em 1988, 1991 e 1993 e face à política de privatizações do PSD e do PS é, hoje, um diploma cheio de "buracos" feitos para permitir a progressiva liquidação e entrega do sector público de economia aos interesses privados.

Mas em todo o caso a Lei em vigor é ainda um instrumento de travagem ao avanço do processo de privatizações - directas ou por concessão - em sectores como a água, o saneamento básico, as comunicações por via postal, as actividades de telecomunicações (com excepção dos serviços complementares e de valor acrescentado), os transportes ferroviários ou a exploração de portos marítimos.

É fácil de perceber que são sectores estratégicos para o País e de alta relevância social.


O Governo do PS revela-se assim um fiel seguidor das pisadas do PSD...

Mais. Confirmando o que ainda recentemente era assinalado por um conhecido e cosmopolita analista insuspeito de ideias comunistas ou aparentadas, consegue agora ir mais longe do que todas as anteriores políticas de direita.

Com a proposta de lei que agora apresenta à Assembleia da República o Governo do PS abre aos grandes interesses particulares e privados todos aqueles sectores e actividades seja através da possibilidade de transferência da propriedade pública seja através da figura da concessão.


Em que planos está a desenvolver-se esta ofensiva?

Neste terreno o PS conduz uma ofensiva em três frentes: na revisão constitucional onde, com o PSD, tem vindo a liderar propostas de descaracterização e enfraquecimento dos comandos e garantias constitucionais quanto ao sector público da economia; na revogação da actual lei de delimitação dos sectores e no gigantesco programa de privatizações que está em curso.


Mas a verdade é que o PS procura fazer passar a ideia de que esta política serve os interesses nacionais e visa criar emprego.

Ao contrário do que o Governo e o PS pretendem fazer crer, esta orientação, inscrita numa lógica do mais puro capitalismo, não se destina nem a dar mais eficiência à economia nem, por esta via, a criar emprego.

Pelo contrário. Como provam as privatizações realizadas, e apesar da propositadamente péssima gestão a que têm sido submetidas as empresas públicas, as privatizações não se traduziram nem em mais eficiência nem em mais emprego.

Basta pensar no sector rodoviário e na supressão de inúmeras carreiras o que tem contribuído para um maior isolamento das populações na actividade siderúrgica ou de construção e reparação naval ou no grande número de despedimentos, rescisões de contratos ou pré-reformas a que as privatizações têm dado lugar.


Podemos então concluir que os beneficários directos e exclusivos desta política são os grandes grupos capitalistas?

O que está em curso é um processo visando entregar aos grupos económicos privados todos os sectores rentáveis da economia ou que o Estado previamente reestrutura, saneia e põe em condições de serem rentáveis (veja-se o caso da EDP, da CP, da TAP ou da EPAC) e alargar igualmente ao controlo privado serviços públicos essenciais.

Entretanto, com tais operações o Governo do PS embolsa centenas de milhões de contos (só para o biénio 98-99 está previsto um encaixe anual na ordem dos 400 milhões de contos) com o único objectivo de cumprir os critérios de Maastricht.

Nesta matéria o PS, no que se refere ainda à proposta de lei em discussão, nem sequer salvaguarda o que era anteriormente um princípio das teorias sociais-democratas: a exigência de nos sectores estratégicos a liberalizar haver, pelo menos, uma obrigação constitucional e legal de, aí, existir sempre um operador público que salvaguardasse o interesse nacional e a função social. Nem sequer isso.


No entanto, o comum dos cidadãos, aparentemente, não se dá conta desta realidade. Fica-se até com a ideia de que ganha terreno e aderentes uma espécie de onda pelo chamado "capitalismo popular"...

As gigantescas campanhas publicitárias que têm rodeado os processos de privatizações (e que o Governo não quer dizer quanto custam) provocam naturalmente ilusões em muitas pessoas, incluindo muitos trabalhadores. O que se passa com a EDP é o exemplo mais recente e mais gritante. Mas, como tem acontecido noutras ocasiões, as ilusões correm o risco de se estilhaçarem atingindo não os grandes mas os pequenos investidores. Como é sabido estas operações de "capitalismo popular" acabam sempre por, no final da linha, se traduzirem sim no reforço dos grupos financeiros, grandes investidores, e do seu controle sobre as empresas a privatizar. Os pequenos investidores que vendem as suas acções após o período de indisponibilidade (e até eventualmente com alguma mais valia imediata) ou, face a quedas nas cotações bolsistas que não controlam, entregam-se rapidamente nas mãos dos corretores e grupos financeiros.


E quem são estes grupos financeiros?

Curiosamente, e contrariando certas teorias, da formação de novos grupos económicos nacionais, grande parte dos grupos nacionais são os grupos tradicionais ou então são testas de ferro de multinacionais. Na banca, por exemplo, e à excepção de Jardim Gonçalves, os grupos económicos que tomaram conta do sector financeiro são bem conhecidos: Champalimaud, Mello e Espírito Santo. E no sector industrial quem já se esqueceu do sector cervejeiro como a Unicer, por exemplo, a cair em "complexas" mãos colombianas?!


Deste processo de privatizações decorrem ainda, aliás, outros custos para o País, para os quais o PCP tem vindo a chamar a atenção...

Sem dúvida. Com efeito, o Governo nunca fala nos custos das privatizações - e são muitos: custos para o País que deixa de ter intervenção em sectores e actividades estrategicamente importantes e quantas vezes deixa de receber os impostos, os custos da recuperação e saneamento das empresas para depois serem entregues aos grupos privados; custos para os trabalhadores que se vêem confrontados com a mudança do estatuto das empresas, com despedimentos e redução das garantias de estabilidade e conquistas sociais que tinham alcançado.

É tudo isto, no fundo que está em debate na Proposta de Lei que o Governo do PS enviou à Assembleia da República que em vez de se chamar, hipocritamente, proposta que "limita o acesso da iniciativa económica privada a determinadas actividades económicas" se deveria chamar, com mais propriedade, "impede o Estado e o sector público da economia de exercerem actividades económicas".