EM FOCO



Uniões de facto

A intromissão do Estado


Por Odete Santos


O debate suscitado na sociedade portuguesa em torno das uniões de facto, com base nos projectos de lei do PCP e dos Verdes, revelou a necessidade de um quadro jurídico que proteja os membros do casal que coabitam como marido e mulher, apesar de não estarem ligados pelo vínculo do casamento.


As uniões de facto existem. A progressão estatística do número de filhos nascidos fora do casamento indica-nos mesmo que aumentam. As uniões de facto são aceites socialmente. Os Portugueses e Portuguesas, na sua maioria, entendem que os direitos das famílias assim constituídas devem ser iguais aos direitos dos casados.

O Grupo Parlamentar do PCP continua a receber mensagens ,de apoio à iniciativa legislativa apresentada, decorrente de outras iniciativas que o PCP vem apresentando desde 1985, pelo menos.

Tratou-se, pois, de um debate importante, apesar das tentativas da sua menorização por uma outra realidade, a das uniões homossexuais.

Sobre a qual o Projecto de Lei do PCP nada dispunha (e bem, como demonstraremos).

União de Facto é um conceito já existente no nosso Direito, apenas relativo às uniões heterossexuais, às uniões entre Homem e Mulher. Se este conceito deve ou não deve ser alterado, vê-lo-emos no final.

Para já, o que importa saber é se deve ser estabelecido um quadro jurídico de protecção das uniões de facto (heterossexuais) mais amplo do que o actualmente existente, e qual.

Depois do 25 de Abril, desapareceu a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos, entre filhos legitimados pelo casamento e filhos nascidos dentro do casamento.

Tratou-se de uma alteração relevante no direito de Família e no Direito Sucessório. Mas, sobretudo, tratou-se de uma alteração com profundas repercussões sociais, que fez desaparecer o estigma que pesava sobre crianças cujos pais não estavam unidos pelo casamento.

Esta alteração feita em nome dos direitos da criança, representou também o afrouxar do juízo de imoralidade que o Estado afixou e afixa ainda nas relações sexuais que não tenham por base o casamento. Para efeito da filiação, as relações sexuais deixariam de ser consideradas imorais pelo direito civil (aliás em obediência ao texto da Constituição da República), perdendo o seu carácter ilícito para o mesmo direito.

Mas não perderam completamente, para o mesmo ramo de Direito, o seu carácter imoral e ilícito quando se trata de estabelecer as consequências jurídicas da união de facto no relacionamento entre os membros do casal. Como veremos.

 

Reprimir a sexualidade

Na verdade, desde que o Poder Eclesiástico primeiro e o Poder Civil depois estabeleceram a obrigatoriedade do casamento como única fonte de relações jurídicas, o Estado arrogou-se o direito de intromissão na vida privada, reprimindo o direito à sexualidade. Exemplos desta intromissão abusiva no direito à privacidade, no direito à sexualidade, encontramo-los na proibição de dissolução através de divórcio, dos casamentos católicos; na proibição de divórcios por mútuo consentimento enquanto o casamento não tiver a duração de 3 anos; na imposição de um período de 6 anos de separação para aceder a um divórcio litigioso, sempre que não se possa invocar violação de deveres conjugais.

A intromissão do Estado foi mesmo mais longe, estabelecendo uma hierarquia dentro da família, na qual o Homem assumia o papel de chefe, a Mulher ocupava o 22 degrau, reservando-se o último lugar para os filhos.

Esta intromissão do Estado, recusando direitos de cidadania, encontrava «justificação» no facto de a família ser considerada a célula fundamental da sociedade. Sendo o alicerce do Estado, o Estado cuidava dos seus alicerces. Sem cuidar do direito à felicidade dos indivíduos.

Factores vários como a industrialização, a entrada das mulheres na vida activa, a sua luta pela emancipação, a luta dos Movimentos Femininos pela autonomia da Mulher, puseram em causa aquele modelo de família.

Algumas uniões de facto representam mesmo a contestação ao estatuto subalterno da mulher na família baseada no casamento. Representam também a contestação à intromissão do Estado na privacidade dos casais, no seu direito à sexualidade, às peias que o Estado coloca à dissolução do casamento.

Outras vezes, as uniões de facto resultam dessa mesma intromissão abusiva. As dificuldades colocadas à dissolução do casamento levam à opção forçada pela união de facto, como única forma de efectivar o direito à felicidade.

Apesar de ter vindo a aligeirar a sua vigilância no interior das famílias, o Estado não deixou ainda de erigir em critério moral a constituição da família baseada no casamento. Não deixou ainda de considerar de alguma forma imorais, e por isso ilícitas, as relações sexuais praticadas sem o suporte do ritual do casamento.


Uniões sob suspeita

A vastíssima jurisprudência existente em todos os países, sobre os direitos das pessoas vivendo em união de facto, revelada pelo Colóquio organizado em Itália, em 1981, pelo Conselho da Europa, mostra a suspeição do Estado relativamente a esta forma de família. Os tribunais de países europeus e não europeus oscilaram entre recusar quaisquer direitos porque na base da exigência dos mesmos estava o concubinato (entendido no sentido pejorativo), e a concessão de alguns direitos mas não com base no reconhecimento de que a convivência como marido e mulher era lícita, embora não baseada no casamento. Com base, apenas, na existência de uma associação, uma sociedade civil.

A sentença proferida em 1976 por um tribunal americano no célebre processo contra o actor Lee Marvin, proposto pela sua companheira, foi já um avanço na medida em que considerou válidos os contratos entre concubinos, cxcepto se explicitamente representassem remuneração de relações sexuais.

Em Portugal, post 25 de Abril, a legislação aligeirou o juzo de censura moral, e portanto o juízo de ilicitude relativamente às uniões de facto. No Código Civil, o adultério não impede que o cônjuge adúltero beneficie em testamento a pessoa com quem cometeu o adultério, desde que a deixa testamentária se destine a garantir prestações alimentares desta, mesmo que subsista a família baseada no casamento (este é o reconhecimento da existência de casos de duas famílias). Sendo necessário, no entanto, que, na altura da morte do cônjuge adúltero, este estivesse separado do seu cônjuge há mais de 6 anos, ainda que se mantivesse o vínculo matrimonial, ou que, dissolvido este, viva em união de facto com a pessoa com quem cometera adultério.

Estas transformações no Código Civil, tornaram-no mais neutro relativamente a pseudomoralismos que fechavam os olhos à relevância da afectividade nas relações familiares. Por vezes, a própria jurisprudência reconhece o valor desses laços de afectividade, e valora laços na constituição de uma nova família, ainda sem dissolução da anterior.

É o caso da interpretação que o STJ fez no seu acórdão de 18 de Março de 1986 sobre o conceito de união de facto, constante do artigo 2020 do Código Civil. Segundo este artigo, vive em união de facto um homem e uma mulher não casados com outrem ou separados judicialmente de pessoas e bens, que coabitem em circunstâncias análogas às dos cônjuges, desde que essa coabitação perdure pelo menos durante 2 anos.

Ora, no acórdão atrás referido, o STJ entendeu que só era de exigir a verificação do requisito de não se ser casado ou de se ser separado judicialmente de pessoas e bens, na altura da morte de um dos membros do casal, contando para apuramento do período de coabitação, mesmo aquele em que um ou os dois membros do casal estivessem ligados a outrem por vínculo matrimonial.

Esta foi uma decisão em que se valoraram os laços de afectividade. Esta foi uma decisão progressista que recusou ao direito civil a censura moral que alguns lhe querem manter.

Mas tal censura tem os dias contados.

Existindo as uniões de facto, sendo aceites socialmente, não sendo consideradas ilícitas, para efeitos de filiação, as relações sexuais não baseadas no casamento, por que o motivo o serão para regular as relações entre o casal?

Dada a aceitação social das uniões de facto, a representação na sociedade de que se trata de um casamento de facto, de que os direitos das pessoas que casaram sem papel passado devem ser iguais aos das pessoas que preferiram o ritual, o Direito de Família deve acompanhar essas transformações, e largar mão, até onde haja correspondência com o pulsar da sociedade, da ideia de que as relações sexuais são ilícitas, porque imorais, quando não tenham sido legalizadas pela assinatura do Conservador do Registo Civil.

Porque as uniões de facto existem. Porque há situações injustas criadas pela omissão de protecção legal às pessoas que, rejeitando a imposição da celebração do casamento, não rejeitam a lei quando vítimas de injustiças.

Deve respeitar-se a liberdade dos que não quiseram recorrer ao formalismo do casamento. Mas há também a situação daqueles que não puderam recorrer a esse formalismo.

E a liberdade implica também responsabilidade. O direito não pode, em nome de um pseudomoralismo, deixar sem protecção os mais fracos psicológica e financeiramente. O direito não pode, pela omissão, proteger os menos escrupulosos.

O Projecto do PCP respeita a liberdade dos que contestam o formalismo do casamento

Não exige nenhum registo das uniões de facto. Ao contrário do que acontece num pré-projecto da Juventude Socialista, que para responder às reivindicações de uniões homossexuais cria um casamento de 2ª. através de um registo nos Centros Regionais de Segurança Social, sujeitando as uniões de facto (uniões entre Homem-Mulher) a esse registo, onde estes compareceriam de mau modo, estamos certos.

Q Projecto do PCP responde à necessidade de extirpar do Código Civil um padrão moral criado pelo Estado, em nome do seu «Direito» a intervir na célula fundamental da sociedade. A Família.