
Morreu Cardoso Pires
«Só se escreve porque se gosta da vida»
Morreu José Cardoso Pires, com 73 anos, após quatro meses em coma profunda. A morte depois de um primeiro sobressalto, uma experiência de morte branca, de que resultou um dos seus últimos livros "De Profundis - Valsa Lenta".
Testemunho ímpar. "Era um glaciar, a morte branca. A memória congelada. Se o sonho é já por si uma memória, sem memória poderá o indivíduo sonhar?", perguntou-se então, em nota de apêndice.
Nascido em São João do Peso, Castelo Branco, a 2 de Outubro de 1925, José Cardoso Pires sempre se assumiu de facto como um escritor das realidades citadinas. Um escritor lisboeta, como ressalta, em particular, dessa espécie de "roteiro pessoal" da cidade - o seu último livro - "Lisboa - Livro de Bordo".
Cardoso Pires deixa uma vasta obra, que retrata a evolução da sociedade portuguesa, nos domínios da ficção, teatro, ensaio e crónica, com tradução em 15 línguas.
Entre as suas obras de ficção, género que iniciou em 1949 com "Os Caminheiros e Outros Contos", destacou-se a "Balada da Praia dos Cães", um retrato vivo das contradições sociais, que foi tema para o filme com o mesmo nome, realizado por Fonseca e Costa.
Para o teatro, Cardoso Pires escreveu "O Render dos Heróis" e "Corpo - Delito na Sala dos Espelhos". Nos últimos anos dedicou-se particularmente às crónicas/memórias.
Grande parte da sua obra evoca os tempos do fascismo, a ditadura de Salazar e Marcelo Caetano. O romance "O Hóspede de Job", publicado nos anos 60, foi um protesto contra a guerra colonial portuguesa, em memória do seu irmão mais novo que morreu com 21 anos num acidente de aviação, durante o serviço militar.
Na bibliografia de Cardoso Pires destacam-se ainda os títulos "A cavalo no Diabo", "O Anjo Ancorado", "Cartilha do Marialva", "O Delfim", "Dinossauro Excelentíssimo", "E agora, José?" e "Alexandra Alpha" (Prémio especial da Associação de Críticos Brasileiros, assumida pelo autor como a sua obra preferida).
Em Dezembro de 1977 recebeu o Prémio Pessoa, e em 1998 foram-lhe atribuídos o Prémio D. Dinis da Fundação da Casa de Mateus, o Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores (APE) e o Prémio de Crítica do Centro português da Associação Internacional de Críticos Literários.
Em 1991, Cardoso Pires foi distinguido com o importante prémio União Latina de Literatura, deixando para trás candidatos tão fortes como Marguerite Duras e Gonzalo Torrente Ballester.
A sua obra foi traduzida em línguas tão diferentes como o finlandês, o grego, o búlgaro, o catalão, o polaco, o italiano, o romeno, o russo, o alemão, o checo ou o castelhano.
Escritor até ao fim, anunciara para breve o lançamento de um novo livro, mas, ainda em Julho, em Lisboa, recusara levantar a ponta do véu sobre o projecto que tinha entre mãos.
Sobre o notável sucesso alcançado pela sua obra "De Profundis - Valsa Lenta", o escritor atribuiu-o ao tema tratado, a morte. "Felizmente, a morte discute-se hoje como nunca se discutiu", comentou então, "Passou a ser encarada como qualquer coisa que faz parte do ciclo da vida".
Logo em seguida, defendeu: "A literatura é vida, mas é também morte, ou seja, é a discussão da morte. Enquanto houver morte há literatura. Mas só se escreve porque se gosta da vida".
Mensagens de pesar
pela morte do escritor e do humanista
Múltiplas têm sido as mensagens de pesar pela morte de Cardoso Pires. De escritores e intelectuais a trabalhadores. Das mais diversas organizações.
A morte de "um cidadão socialmente empenhado, atento à vida e às suas contradições, mas reflectindo sempre na sua escrita uma perspectiva de optimismo quanto ao futuro da Humanidade e dos homens", é referida em nota da CGTP-IN, que lembra que o
escritor, pouco antes de cair doente, tinha aceite o convite de falar sobre Lisboa, numa iniciativa dedicada ao 50º aniversário da morte de Bento de Jesus Caraça.
Em telegrama enviado à família do escritor, Carlos Carvalhas, secretário geral do PCP, diz: Com profunda tristeza expresso os meus sentidos pêsames à família do amigo, do grande escritor, do humanista e interventor cívico que foi José Cardoso Pires.
De seguida, aqui reproduzimos, na íntegra, os comunicados da Comissão Política do PCP e do Sector Intelectual da ORL do Partido Comunista Português.
Comissão Política do PCP
A morte de José Cardoso Pires constitui uma perda irreparável para a Literatura da Língua Portuguesa e para a cultura nacional.
A morte do grande escritor é também a perda do cidadão combativo, vertical e solidário, do democrata empenhado e interveniente, do homem de esquerda que sempre se situou ao lado da liberdade e da democracia, dos explorados, dos humilhados e ofendidos.
A Comissão Política do PCP, traduzindo o sentir dos comunistas portugueses, manifesta o seu profundo pesar pela trágica ocorrência e expressa à família de José Cardoso Pires as mais sentidas condolências.
Sector intelectual da ORL do PCP
Morreu um dos maiores escritores portugueses do nosso tempo. Recolhemo-nos perante a sua memória. Mas saudamos acima de tudo a sua obra, que a morte não conseguirá destruir.
José Cardoso Pires, pela precisão e depuramento da sua prosa, pela imaginação e inventiva dos seus textos, pela sua ironia subtil e algo amargurada, pela forma como exprime a ternura para com as figuras populares, pelo grande amor à cidade onde cresceu e se fez homem, deixou na nossa literatura um lugar marcante, que merece a admiração de todos os portugueses.
Mas não ocorreu apenas o desaparecimento físico do grande escritor e do homem de cultura. Perdeu-se um cidadão sempre interveniente e atento, sempre pronto a denunciar as prepotências e as injustiças, sempre disponível para a defesa das causas justas e dos valores da paz, da solidariedade e do progresso.
A Direcção do Sector Intelectual da ORL do Partido Comunista Português lamenta a perda do escritor e do cidadão. Mas assinala, sobretudo, a importância da sua actividade criativa para a cultura portuguesa deste século e da sua intervenção cívica para a
implantação e defesa da democracia.
Obrigado, Zé.
Esperávamos e temíamos a notícia há vários meses. Apesar disso ela chegou com a violência e a dor das notícias inesperadas.
Com a morte de José Cardoso Pires perdemos um dos maiores escritores do nosso tempo; um homem de convicções, vertical e coerente; um amigo insubstituível. E assim sendo, foi muito o que perdemos mas é muito, também, o que, do Zé, nem a morte conseguirá roubar-nos.
Porque connosco ficará todo o tempo a obra notável do grande escritor, a sua prosa depurada, onde nada falta e nada está a mais, "sem plumas"... e os personagens que criou e através dos quais nos mostra este país que somos e que queremos melhor.
Porque connosco ficará todo o tempo a impressiva marca do homem lúcido e corajoso, do cidadão interveniente e sempre posicionado do lado da justiça , da solidariedade, da liberdade, do progresso, dos explorados e dos que lutam contra a exploração.
Porque connosco ficará todo o tempo a inapagável memória das longas, longas conversas com o Zé, dessas voltas ao mundo e à vida que com frequência dávamos, sem pensar nas horas que passavam, na noite que avançava, na madrugada que chegava.
Por tudo isto, obrigado Zé. José Casanova
«Avante!» Nº 1300 - 29.Outubro.1998