Hesitações
e compromissos
travam reforma na saúde
Entrevista
com Paulo Fidalgo
conduzida por Domingos Mealha
Ultimamente, a propósito da «greve self-service» de médicos desencadeada pelo SIM, têm sido referidos publicamente, com mais insistência, problemas como as grandes demoras nas urgências dos hospitais, na marcação de consultas, operações, análises...
Não será, por certo, o momento ideal para uma discussão ampla e profunda, serena e produtiva, sobre os graves males da saúde e os caminhos para a sua resolução. Não deixa de ser oportuno, a propósito, recordar que, em ocasiões de menor polémica, opiniões e propostas apresentadas pelos comunistas ficaram submersas num sufocante silêncio. Vale também a pena lembrar que reivindicações mais sérias de sindicatos com muito maior representatividade que a estrutura promotora do self-service tiveram que ser sublinhadas por formas de luta, incluindo greves, com elevadas adesões de enfermeiros, médicos e demais trabalhadores da saúde, para que o Governo lhes desse satisfação.
Com este pano de fundo se desenrolou a entrevista com Paulo Fidalgo, médico comunista que há já alguns anos trabalha activamente na Comissão Nacional do PCP para as questões da Saúde.
«Avante!»: Justificam-se maiores preocupações neste momento, relativamente às listas de espera e às demoras na resposta do serviço público de saúde às necessidades dos portugueses?
Paulo Fidalgo: O problema sempre foi muito sentido. Mas esta acção do SIM acaba por ter impactos significativos, pelo facto de ser muito selectiva e mesmo contando com escassos apoios entre os médicos. A prestação de cuidados de saúde é multidisciplinar, e o facto de faltar uma pessoa numa equipa, em certas circunstâncias, acarreta a interrupção de um programa de produção. Os impactos são muito maiores do que a percentagem de adesões à greve. Por estes motivos, as listas de espera estão a aumentar e há alguma razão para pensar que a situação estará pior agora.
No quadro de problemas que se vive na saúde, as demoras são o mais grave?
As demoras
são o principal instrumento que podíamos ter disponível, caso
ele estivesse estudado, para medir a oferta de cuidados de saúde
e o acesso que a população a eles tem. A noção das demoras é
um parâmetro importante na avaliação do sistema.
É claro que estamos muito aquém das necessidades da
população. O nosso sistema de saúde tem tais carências, que
as pessoas só têm acesso fácil se estiverem muito gravemente
doentes.
É realmente diferente a situação, quando se trata de instituições privadas?
Globalmente,
a qualidade é melhor no sistema público de saúde, mas há
áreas de negócio que, pontualmente, a lógica capitalista
desenvolveu mais rapidamente.
A nossa indústria privada de cuidados de saúde é hoje muito
incipiente. Quer pelos recursos humanos disponíveis, quer pelo
equipamento instalado, não tem qualquer capacidade de competir
em qualidade com o sistema público.
O que o sistema privado permite é, pela sua natureza
capitalista, acessos rápidos, porque estão dependentes do poder
de compra dos clientes, e isto também é qualidade. Em
determinadas áreas altamente rentáveis, o sistema privado
tem-se apetrechado em equipamentos mais rapidamente que o
público. No capítulo da hotelaria, um aspecto não
desprezível, também o sistema capitalista de prestação de
cuidados tende a oferecer algum serviço mais sofisticado.
Não é pelo maior desenvolvimento do sector privado da saúde que se vai obter uma maior rapidez no atendimento dos doentes?
Como
comunista, acredito firmemente que somos capazes de construir um
sistema não capitalista de prestação de cuidados de saúde à
população, baseado numa indústria de propriedade pública e em
que os trabalhadores estejam fortemente associados à
responsabilidade do sucesso dessa indústria.
As sociedades acabam por ter de construir sistemas de protecção
colectiva da saúde. A forma de administrar melhor os recursos
para tal objectivo é dispor de um sistema que permita o máximo
aproveitamento desses recursos colectivos.
O Serviço Nacional de Saúde é uma pré-munição de uma
organização não capitalista da sociedade. Pode ser
reorganizado e pode ser aprofundada a sua experiência, pode ser
muitíssimo melhor articulado com os interesses da população -
e o Partido tem apontado críticas e propostas nesse sentido.
A saída pela via capitalista não vai conduzir a nada, como se
viu, de forma geral, noutros países - com a única e especial
excepção dos EUA, onde o sistema é abertamente capitalista. No
Canadá e na Europa Ocidental todos os países, de uma forma
geral, evoluíram para sistemas de protecção pública.
Houve uma alteração, mais visível a nível das ideias, com a mudança de Governo, depois de 15 anos de PSD à frente da saúde. Por que é essa alteração menos visível na situação do sector?
No Partido
temos avaliado como positivas determinadas teorizações,
determinados pontos de vista, alguns anúncios de linhas de
actuação por parte do Ministério da Saúde. Mas notamos uma
enorme hesitação na sua aplicação prática, notamos uma
grande inclinação para compromissos com lobbies
poderosos no sistema e achamos que há uma grande incapacidade de
iniciar um processo efectivo de reforma democrática do Serviço
Nacional de Saúde. Cada vez que querem mexer numa ponta,
erguem-se logo dezenas de interesses e de vozes poderosas que
pretendem que o SNS se mantenha como está e procuram abrir
caminho para que seja retomada uma linha pró-liberal que vigorou
durante a época do PSD.
Com este Ministério essa linha não tem dado novos passos, e
foram anunciados propósitos, importantes e interessantes, de
começar a reorganizar o SNS e dar-lhe um novo dinamismo. Só que
tem sido visível uma enorme hesitação e uma teia enorme de
compromissos que impedem o início de uma dinâmica efectiva de
reforma.
Outra postura de quem ocupasse a pasta, mesmo que fosse um comunista, iria certamente defrontar-se com idênticas resistências...
Sim e,
eventualmente, a energia política e a linha para abrir um
caminho de reforma seria mais nítida se os comunistas estivessem
no Governo, uma vez que, para que esta presença se verificasse,
seria necessária uma definição de política geral que tivesse
o acordo do PCP.
Aqui está o motivo por que este Ministério é extremamente
hesitante. O Governo tem uma linha geral pró-capitalista numa
série de áreas estratégicas - as privatizações da grande
indústria e da banca, a política europeia e a moeda única...
É óbvio que, nestas circunstâncias, o Governo é muito
limitado em qualquer iniciativa não capitalista na área da
saúde. Pode até dizer que, de coração, está com os
interesses da população... Mas, quando se defronta, por
exemplo, com a indústria de produção de medicamentos, não
consegue mais do que regatear.
Estas contradições provavelmente não existiriam num Governo em
que o PCP tivesse responsabilidades na saúde. Haveria unidade
política e sentido estratégico mais claro a favor do SNS e de
um desenvolvimento não capitalista. Embora defrontando esse tipo
de lobbies, teríamos uma mobilização muito mais clara
dos interesses populares e dos interesses dos profissionais a
favor desse tipo de consigna.
Estou convencido de que a saída para os problemas do Serviço
Nacional de Saúde está no reforço da posição do PCP e na sua
capacidade de se assumir como força dirigente do SNS.
Medicamentos,
salários
e outras despesas
Como é que o actual sistema de comparticipações no preço dos medicamentos favorece os mais caros, com maiores custos para o Estado?
O Serviço
Nacional de Saúde presta cuidados à população num ambiente
que não tem mercado. O doente não tem que comprar nada, não
tem que administrar fundos pessoalmente por causa das opções
que toma dentro do sistema de saúde. Isto dá ao sistema uma
enorme capacidade de atribuir e planear os recursos e de gerir a
realidade nacional com muito mais coerência. Contudo, nunca foi
adoptada uma política semelhante quanto ao sector dos
medicamentos, relativamente ao qual o sistema de saúde público
aceita completamente as regras do mercado. Esta é uma questão
de fundo, uma contradição que um dia teremos que resolver.
O sistema público de comparticipação foi construído de
maneira a não interferir nas chamadas regras do mercado do
medicamento, onde os preços das diferentes marcas são definidos
segundo os critérios dos fabricantes. Como o sistema público
financiador está obrigado às regras mercantis e não pode ser
mais a favor deste ou daquele medicamento, para não ser condicionador
- nesta argumentação de tipo liberal - foi decidido, ainda
antes do 25 de Abril, que o Estado fizesse a comparticipação em
percentagem, independentemente do preço, cabendo ao médico e ao
doente escolher a marca do remédio.
Assim, havendo uma substância química única que está presente
no mercado com nove marcas de preços diferentes, o valor da
comparticipação do Estado é mais elevado na marca mais cara.
Pela mesma substância química, a marca vendida ao preço mais
baixo recebe menos dinheiro de comparticipação. Na verdade, o
Estado está desta forma a financiar parcialmente o sistema de
mercado.
Para alterar isto, o sistema público teria de começar a
abandonar o sistema mercantil. A alternativa foi parcialmente
equacionada pelo Ministério da Saúde, ao avançar com os
chamados preços de referência, cuja aplicação está
agora a começar e já provoca uma agitação que nunca vi antes
por parte da indústria farmacêutica. Pela primeira vez, está a
ser dado um pequeno passo: o Governo diz que comparticipa um
determinado valor médio do preço da molécula,
independentemente da marca, e vai deixar de comparticipar nos
preços que ultrapassam esse valor médio.
Há uma grande incongruência no actual sistema. As grandes
empresas capitalistas de saúde dos Estados Unidos tomaram
medidas drásticas de condicionamento do mercado dos
medicamentos, enquanto o nosso sistema público mantém uma
abertura total ao mercado, que acarreta elevados encargos
desnecessários para o Estado mas que tem, provavelmente, muito
mais interesse para as empresas fabricantes. O único elemento
que foge ao mercado é o medicamente prescrito aos doentes
internados nos hospitais, cuja compra é ajustada pela farmácia
de cada hospital num concurso com as várias marcas.
O PCP propôs em Outubro que fossem fornecidos gratuitamente nos hospitais e centros de saúde alguns medicamentos, o que custaria menos ao Estado do que a comparticipação. Como é isto possível?
Em vez de
pagar uma percentagem sobre o preço de venda de uma embalagem na
farmácia, o Estado pode lançar um concurso para aquisição de
várias toneladas de uma dada substância química. Esta compra
terá, feitas as contas, um custo talvez dez vezes inferior ao
preço de venda de cada embalagem numa farmácia.
Isto é muito claro para um conjunto de substâncias prescritas
nas urgências. Actualmente, o médico receita um analgésico na
urgência de um hospital, que a farmácia vende, suponhamos, por
mil escudos; metade deste preço é paga pelo hospital onde foi
passada a receita. Se o hospital comprasse os analgésicos por
grosso e os fornecesse gratuitamente no seu serviço de
urgências, gastaria muito menos dinheiro do que aquilo que paga
hoje pela comparticipação: em vez de quinhentos escudos,
gastaria cinquenta.
O impacto desta medida não é maioritário na despesa da saúde.
Mas mostra que não há razões que justifiquem que não haja uma
intervenção com medidas de racionalização do mercado de
medicamentos. Para o desenvolvimento do Serviço Nacional de
Saúde é inevitável restringir o mercado e controlar os gastos.
O PCP não está sozinho nesta posição, há muitas outras
pessoas que nos acompanham nestas propostas.
A poupança assim obtida permitiria, por exemplo, melhorar as remunerações dos médicos?
Em termos de
macroeconomia, o sistema de saúde tem quatro grandes áreas de
despesa: os profissionais, os medicamentos, as farmácias e as
instalações e equipamentos. Há necessidade de alterar o status
quo da actual distribuição de recursos por estas áreas. Os
profissionais são aqueles que mais precisam de revalorização e
os outros sectores talvez tenham que encarar uma redução.
Mas esta greve desse sindicato é um fenómeno mais complexo. Uma
revalorização salarial, sobretudo da magnitude da que está a
ser reclamada, só pode ocorrer mediante uma associação dos
profissionais a novas formas de trabalho, não se pode discuti-la
sem equacionar a reforma da maneira como trabalhamos nos
hospitais e centros de saúde, para aumentar a resposta ao
público.
A proposta do SIM é totalmente irrealista, porque não tem nada
em conta a necessidade de que passemos a trabalhar de maneira
completamente diferente, premiando quem trabalha melhor,
distinguindo aqueles que trabalham no sistema público de saúde
com mais dedicação e que procuram torná-lo mais eficiente,
daqueles que têm uma ligação mais ténue com o sistema, onde
vão apenas fazer umas horas.
Apesar de muito radicais nas reclamações remuneratórias, os
promotores desta greve parecem não querer que se discuta a
sério o regime de trabalho, gostariam de evitar que houvesse
mexida no essencial da maneira de trabalhar. Este tipo de acção
grevista põe problemas muito sérios ao Serviço Nacional de
Saúde.
Queremos que seja melhorada a situação material dos
profissionais, mas sobretudo queremos que o Serviço Nacional de
Saúde tenha sucesso e aumente a sua capacidade de resposta à
população. É irrealista estar a pedir a Lua em remunerações,
sem ao mesmo tempo estarmos a discutir a fundo uma reformulação
global do SNS.