TRIBUNA
Governo e Grão-Pará: O Acordo Global

Por António Filipe


Para garantir o Grande Prémio de Fórmula 1 em 1998 o Governo PS aceitou trocar os 20 milhões de contos de créditos do Estado sobre o Grupo Grão-Pará por 51% do Autódromo e por um hotel falido e encerrado desde Janeiro de 1995. Por fim, não houve Fórmula 1. O Governo acusou o Grupo Grão-Pará de ter frustrado os interesses do Estado, mas nem por isso pôs em causa o Acordo Global.

O Inquérito Parlamentar para apreciação dos negócios do Governo PS com alguns Grupos Económicos tem praticamente concluído o dossier relativo ao chamado Acordo Global entre o Estado e o Grupo Grão-Pará, envolvendo as questões relativas ao Autódromo do Estoril, à realização da Fórmula 1 em Portugal, ao Hotel Atlantis Madeira, e claro, às vultuosas dívidas daquele Grupo ao Estado Português. Não sendo possivel no espaço de um artigo dilucidar em pormenor o vasto imbróglio que envolveu este negócio, vale a pena, ainda assim, extrair dele algumas notas de síntese.
A primeira nota diz respeito à seguinte questão: Quanto deviam afinal ao Estado as empresas do Grupo Grão-Pará? Em rigor, o Governo não sabia. O Secretário de Estado Vitalino Canas, que chefiou as negociações por parte do Governo, avaliou "grosso modo" essas dívidas em 20 milhões de contos, afirmando porém que não podia garantir que o Estado conseguisse provar judicialmente a existência de muito mais que os 4,2 milhões de contos que o Governo PSD havia calculado com referência a 1989.
Este é o primeiro facto espantoso. Em resultado de muitos anos de incúria de sucessivos Governos, o Estado colocou-se a si próprio na posição de não poder fazer valer a totalidade dos créditos que sabia deter sobre o Grupo Grão-Pará, no valor de vários milhões de contos.
Isso não foi no entanto obstáculo a que o Governo tenha decidido sentar-se à mesa com os representantes do Grupo Grão-Pará para tentar encontrar uma solução global negociada quanto a essas dívidas. A razão deste tratamento de excepção fica mais clara se pensarmos que uma das empresas do Grupo – a Autodril – era a proprietária do Autódromo do Estoril, único equipamento desportivo apto a albergar o Grande Prémio de Portugal de Fórmula 1, que aí se realizou durante vários anos ao abrigo de um protocolo assinado em 1984 entre a Câmara de Cascais e a Autodril.
Esse protocolo garantia a realização do Grande Prémio no Autódromo até ao ano de 2009, só que nem por isso as relações entre o Estado e a Autodril foram pacíficas, quer no que se refere às condições de utilização, quer no que se refere às obras a realizar no Autódromo. Por isso mesmo, em 1991, o Governo PSD tentou comprar o Autódromo, cedendo à Imobiliária Grão-Pará os créditos que o Estado detinha sobre outras empresas do Grupo. Esse negócio, entretanto, gorou-se, continuando o Estado, de ano para ano, a investir em obras sucessivas no Autódromo destinadas a garantir a qualquer preço a realização da Fórmula 1.
Já com o Governo PS, foi mais uma vez a Fórmula 1, e neste caso a realização do Grande Prémio de 1998, que determinou a negociação do Acordo Global com o Grão-Pará, que, para além de outros aspectos relativamente secundários, constou de duas componentes fundamentais: Uma relativa ao Autódromo, outra relativa ao Hotel Atlantis Madeira.
No que se refere ao Autódromo, a Autodril comprometeu-se a constituir duas Sociedades: Uma Sociedade Imobiliária, proprietária do Autódromo, em que 51% do capital social foi entregue ao Estado por conta das dívidas do Grupo Grão-Pará. E uma Sociedade Gestora do Autódromo, em que 51% do capital foi subscrito pelo Estado, destinada a garantir a possibilidade de realizar a Fórmula 1 ao abrigo de objecções colocadas pela Autodril.
Importa referir entretanto que não houve uma avaliação autónoma do Autódromo com vista à celebração do Acordo. Nem havia acordo algum quanto ao seu valor. Em 1993 (ultima avaliação conhecida) um perito do Estado avaliou-o em 4,3 milhões de contos e um perito do Grupo Grão-Pará avaliou-o em 14,1 milhões. De qualquer modo, o objectivo de ter a Fórmula 1 em 1998 fez com que o Governo tenha aceite, a troco dos créditos do Estado, assumir o controlo do Autódromo e adquirir o Hotel Atlantis, avaliado pelas Finanças em 5,1 milhões de contos (para além de um bloco de apartamentos avaliado em 370 mil contos).
O Hotel Atlantis Madeira constitui um caso, dentro deste caso. Em Janeiro de 1995, a empresa proprietária, Interhotel, pertencente ao Grupo Grão-Pará, fechou o Hotel, lançando no desemprego 177 trabalhadores, que impugnaram judicialmente o despedimento. Desde 1985 que se encontrava pendente uma acção de recuperação da empresa, que foi considerada insolvente em Agosto de 1995. A Administração justificou o encerramento do Hotel com base nos resultados negativos de vários anos, consequência da projectada ampliação do aeroporto da Madeira, que implicaria a sua demolição. Nessa base, o Grupo Grão-Pará reivindicava judicialmente a expropriação do Hotel por parte do Estado.
No âmbito do Acordo global, o Governo aceitou ficar com o Hotel Atlantis, desconhecendo qual o seu destino final. Se os estudos aeronáuticos a realizar concluíssem pela inevitabilidade da expropriação, o que veio de facto a acontecer, a avaliação efectuada poderia revelar-se vantajosa para o Estado. Porém, na hipótese admitida pelo Governo de não haver lugar a expropriação, o Estado ver-se-ía obrigado a assumir a responsabilidade directa pela exploração de um hotel encerrado há dois anos e meio com a invocação da sua inviabilidade e cuja insolvência havia sido judicialmente declarada, assumindo de igual modo a responsabilidade pela situação dos seus 200 trabalhadores. Nesse caso, a opção do Governo poderia ter méritos do ponto de vista social, embora fosse extremamente pesada do ponto de vista financeiro. O Estado abdicaria dos seus créditos sobre o Grupo Grão-Pará, passando a assumir os encargos que a Interhotel não tinha conseguido solver. Por seu lado, o Grupo Grão-Pará ver-se-ía livre de dois problemas: O das dívidas ao Estado e o da insolvência do Hotel, com todas as suas consequências.
O que aconteceu entretanto foi que o Governo, que havia celebrado este Acordo Global tendo a realização do Grande Prémio de Fórmula 1 como pressuposto determinante, acabou por ficar sem esse Grande Prémio, por responsabilidades que imputou inteiramente à má-fé do Grupo Grão-Pará.
Tudo porque, tendo o Tribunal de Contas recusado o visto para a realização de um conjunto de obras no Autódromo adjudicadas sem concurso pela Câmara de Cascais (com a autorização do Governo), o Ministro Pina Moura tentou passar para a Sociedade Gestora do Autódromo a responsabilidade pelas obras em falta para garantir o Grande Prémio. Só que as dificuldades criadas pelo Grupo Grão-Pará à transferência dessas responsabilidades acabariam por gorar o objectivo visado pelo Governo.
Nessa altura, o Secretário de Estado Vítor Neto, em carta ao Grupo Grão-Pará, considerou-o responsável pela "frustração das expectativas e direitos do Estado", e ameaçou que o Governo não poderia deixar de tirar desse facto "as devidas ilacções". Perguntam que ilacções tirou o Governo? Nenhumas! Seguiu com o Acordo Global, avançou com a Sociedade Gestora e investiu mais 2,3 milhões de contos em obras no Autódromo, na esperança de ainda um dia voltar a ter Fórmula 1. E nem sequer tirou a ilacção mais óbvia, que reside no facto do valor do Autódromo e o interesse do Estado na sua utilização serem completamente diferentes conforme haja ou não Grande Prémio de Fórmula 1.
E vejam só como são as coisas: No caso da Torralta, que aqui abordei há uns tempos, o Governo passou a patacos ao Grupo SONAE mais de 30 milhões de contos de créditos do Estado, invocando a falência das empresas e a falta de vocação do Estado para a indústria hoteleira. No caso Grão-Pará, a ânsia de conseguir a qualquer preço realizar o Grande Prémio de Fórmula 1, fez com que o Governo redescobrisse a vocação hoteleira do Estado, aceitando como pagamento dos seus créditos, o Hotel Atlantis, falido, e encerrado há mais de dois anos e meio. Dirão os leitores que houve aqui uma evidente dualidade de critérios, só que pensando bem, num caso estava o Grupo SONAE que queria ficar com a Torralta e no outro estava o Grupo Grão-Pará, senhorio do Autódromo do Estoril, que se queria desfazer do Hotel Atlantis. E isso, só por si, explica muita coisa.


«Avante!» Nº 1317 - 25.Fevereiro.1999