NATO pronta a atacar Jugoslávia


O ataque da NATO à República Federal da Jugoslávia parecia estar iminente no encerramento desta edição. A peça de absurdo levada à cena em França, há uma semana, com a assinatura de um «acordo» sobre o Kosovo deu início à contagem decrescente do que qualquer observador imparcial terá de considerar um acto de terrorismo contra um Estado independente.

O que se passou em França foi simultaneamente uma farsa e um testemunho da prepotência dos EUA e dos seus aliados ocidentais. Depois de «conversações» em que as partes envolvidas em confronto nunca se sentaram à mesma mesa nem dialogaram, chegou-se a um «acordo» que os independentistas do Kosovo rubricaram num cerimónia grotesta a que nem a imprensa internacional pôde assistir.
Como um acordo implica por definição pelo menos duas partes, coloca-se a questão de saber quem acordou com quem e o quê. A resposta é simples: os independentistas do Kosovo acordaram com o Grupo de Contacto (excepto a Rússia), um texto que negociaram com os EUA e que nunca foi negociável, nem negociado, com os jugoslavos.
Consumado o acto, chegou-se à fase dos ultimatos, que afinal foi sempre a mesma desde o princípio: ou a Jugoslávia assinava, abrindo a porta à secessão do país e às tropas da NATO, ou não assinava e a NATO lhe arrombava a porta para a entrada das suas tropas e da secessão do país.
«Escolha» difícil, como se compreende. Perante a «intransigência» de Belgrado, o pessoal da OSCE recebeu ordem de retirada e retirou-se, o mesmo sucedendo com outras organizações, pessoal diplomático dispensável e estrangeiros em geral.
Num «último aviso», o norte-americano Richard Holbrooke foi à capital sérvia dizer ao presidente jugoslavo, Slobodan Milosevic, a mandado de Madeleine Albright, que ou aceitava o «acordo» ou a NATO entrava em acção (mais de 400 aviões de combate, alguns dos quais portugueses, estão a postos para o ataque).
Aparentemente, a oposição da Rússia à intervenção da NATO é irrelevante. O mesmo se pode dizer quanto à China, cujo governo considerou «inaceitável» qualquer acção militar contra a Jugoslávia, defendendo que a questão do Kosovo constitui «um assunto interno» daquele país que deve ser resolvido «pelo diálogo, com base no respeito da soberania e da integridade territorial da Jugoslávia e assegurando os direitos e os legítimos interesses dos diferentes grupos étnicos do Kosovo».
«Os EUA e o presidente Clinton dizem que a América tem interesses vitais na região», lembrava há dias um responsável jugoslavo, fazendo de seguida a pergunta que ninguém quer ouvir:
«Então a Sérvia e a Jugoslávia? Onde é que é suposto termos interesses nacionais e de Estado? Se alguém tem interesses aqui somos nós e é por isso que estamos empenhados numa solução política, democrática e pacífica».

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As razões de Milosevic

Sempre que se fala da posição dos sérvios na questão do Kosovo é para dizer que não aceitam o «acordo» para a região, que mantém a sua «intransigência», que «não cedem». O que não se diz é que «acordo» é esse e quais as razões da «intransigência». Uma carta de Milosevic a Hubert Vedrine e Robin Cook, respectivamente ministros dos Negócios Estrangeiros da França e da Grã-Bretanha, explica os motivos em que redica a posição jugoslava. É essa carta que, pelo seu interesse, a seguir se reproduz.

«As conversações de Paris, a que chamaram adiamento, não ocorreram. A delegação do Governo da República da Sérvia e os representantes dos separatistas albaneses e do movimento terrorista nunca se encontraram para falar.
«Em relação ao «Acordo» assinado, há que dizer que foram assinados dois documentos em Paris.
Um dos documentos foi assinado pelos representantes de todas as comunidades nacionais do Kosovo, e estes são os representantes do Kosovo. O outro documento foi assinado pelos representantes separatistas da Albânia e pelo movimento terrorista e eles, claro, não são representantes do Kosovo.
«Esse outro documento, a que chamam Acordo de Rambouillet, não é o acordo de Rambouillet. Porque nem em Rambouillet nem em Paris os negociadores negociaram. Não houve conversações entre eles, pelo que não pode haver um documento comum para ser aceite ou rejeitado.
«Por outro lado, o texto a que chamam Acordo de Rambouillet foi publicado pela imprensa do Kosovo (o jornal albanês «Koha Ditore») antes das conversações de Rambouillet começarem.
Belgrado é tolerante, mas não é estúpida. Devido à estupidez de outros, o documento que deveria ter sido o resultado das conversações que ainda não tiveram lugar, foi publicado.
«Como é evidente, não temos nada contra a preparação de um rascunho de documento antes das conversações começarem. Mas somos totalmente contra o facto de não haver conversações nenhumas e de nos ser pedido que assinemos algo que sendo eventualmente um rascunho de acordo se transforme num acordo, sem que nunca nos tenhamos encontrado com a outra parte.
Assim, a minha resposta à vossa declaração «o acordo está na mesa» é a seguinte: Só um rascunho de acordo pode estar na mesa. Mas uma mesa vazia não leva a nenhum acordo. Nem nenhum acordo pode ser alcançado se apenas um lado da mesa está ocupado. As partes envolvidas têm que se sentar à mesa.
«Quanto às vossas ameaças de uma intervenção militar da NATO, o vosso povo deve sentir-se envergonhado por estarem a preparar o uso de forças contra uma pequena nação europeia só porque protege o seu território contra o separatismo, protege os seus cidadãos contra o terrorismo, e a sua dignidade histórica contra ratazanas que não sabem nada sobre história e dignidade.
Afirmam que grandes movimentos das nossas forças de segurança são motivo de forte preocupação. Se pensam que são motivo de preocupação para os separatistas que pretendem retirar-nos uma parte do território da Sérvia e da Jugoslávia, é claro que eles é que devem estar preocupados. Se têm em mente alguns possíveis agressores fora da Jugoslávia, isso também deve ser motivo de preocupação para eles.
«É bem possível que uma pessoa normal pense que alguém que está a ser ameaçado não mostraria intenções de se defender.
«Vossas Excelências são ministros dos Negócios Estrengeiros de dois países europeus e diplomatas distintos. Nessa qualidade, têm o direito de mediar, de negociar, de apelar à boa vontade, de zelar pela paz na Europa, por melhores relações entre as nações. Mas não têm o direito de ameaçar outros países e outros cidadãos, ou para facilitar a vida noutros países.
«Mantemos a nossa convicção de que os problemas do Kosovo e Metohija devem ser resolvidos por meios pacíficos, através de negociações. O facto de as negociações não terem ocorrido nem Rambouillet nem em Paris não significa que devemos desistir delas. Pelo menos do nosso ponto de vista democrático e pacífico.»


CPPC denuncia
expansionismo militar

«A insistência com que os EUA têm colocado, no quadro das negociações de Rambouillet, e fora do quadro das Nações Unidas, a aceitação da presença militar da NATO dentro da Federação da Jugoslávia denuncia o seu real objectivo: reforçar a presença militar efectiva no centro da Europa e castigar todos os que se oponham à concretização dos seus projectos expansionistas». A acusação é do Conselho Português para a Paz e a Cooperação (CPPC), que em comunicado divulgado no fim-de-semana manifesta «a sua mais viva preocupação com a situação no Kosovo».
Para o CPPC, a «eventual intervenção da NATO no Kosovo confirma o carácter agressivo daquela aliança militar ao serviço exclusivo dos interesses estratégicos dos EUA», e acentua a «marginalização das Nações Unidas», bem como «a menorização e instrumentalização ao sabor das conveniências norte-americanas de organismos internacionais vocacionados para a prevenção e resolução pacífica de conflitos, como seja a OSCE».
Considerando que uma eventual intervenção da NATO naquela região, para além de «ilegítima e ilegal», só servirá para dificultar «uma solução pacífica que garanta a paz e a estabilidade» nos Balcãs, o CPPC exige ao Governo português que não participe nem apoie uma agressão à Jugoslávia, e reclama o fim das ingerências externas abusivas na região.
No seu comunicado, o CPPC apela ainda ao empenhamento sério da comunidade internacional na busca de uma solução política para o conflito que respeite a legalidade internacional, os direitos humanos e a soberania dos Estados.


Croácia acusada
de crimes contra sérvios

Os sérvios foram vítimas de uma campanha de «limpeza étnica» levada a cabo pelo Exército croata em 1995, denunciou domingo o New York Times com base no relatório do tribunal internacional de crimes de guerra sobre a «Operação Tempestade».

Citando documentos secretos do tribunal criado pelas Nações Unidas em 1993, o NYT afirma que os investigadores chegaram à conclusão de que a Croácia efectuou execuções sumárias e bombardeou indiscriminadamente populações civis.
Segundo o jornal, o tribunal prepara-se para indiciar três generais croatas o que, a confirmar-se, seriam as primeiras acusações contra responsáveis do Exército croata por crimes cometidos na guerra dos Balcãs entre 1991 e 1995. Recorda-se que o conflito, que posteriormente levou à divisão da Bósnia, teve início com as manobras separatistas da Croácia. Com o apoio da Alemanha e a conivência da União Europeia, a Croácia aliou-se aos croatas bósnios e desencadeou uma guerra «étnica» contra os sérvios. A entrada da NATO no conflito, ao lado dos croatas, forçou a Sérvia a aceitar os acordos de Dayton, traduzidos na «paz» vigiada que hoje impera na região retalhada da Bósnia, cujo controlo efectivo está nas mãos dos chamados «árbitros» internacionais.
Mais de 100 mil sérvios foram expulsos das suas terras. Apesar disso, durante todo o conflito, e mesmo posteriormente, os sérvios foram sistematicamente acusados de múltiplos crimes, designadamente de «limpeza étnica».
O relatório agora divulgado pelo NYT vem dar uma nova versão dos acontecimentos. «Ao longo da ofensiva militar, as Forças Armadas croatas e a polícia especial cometeram inúmeras violações da lei humanitária internacional, incluindo o bombardeio de Knin e outras cidades», diz o documento, acrescentando que «durante, e nos 100 dias que se seguiram à ofensiva militar, pelo menos 150 civis sérvios foram sumariamente executados e muitas centenas desapareceram».
De acordo com o jornal, os investigadores reuniram «material suficiente para determinar que os três generais que comandaram a operação militar» - e foram responsáveis pela expulsão dos sérvios - podem ser processados à luz das leis internacionais.
Até hoje, o tribunal criado pela ONU processou 83 pessoas, a maioria sérvios.


«Avante!» Nº 1321 - 25.Março.1999