Legislar contra a discriminação racial
Por António Filipe
Por iniciativa do PCP, a Assembleia da República debate hoje mesmo, pela primeira vez, um Projecto de Lei destinado a prevenir a prática de discriminações no exercício de direitos por motivos baseados na raça, cor, nacionalidade ou origem étnica.
O Grupo Parlamentar
do PCP decidiu utilizar um dos seus direitos de marcação da
Ordem do Dia da Assembleia da República, para levar a debate o
primeiro Projecto de Lei apresentado em Portugal com o objectivo
de dar cumprimento, com carácter geral, no plano legislativo,
às obrigações assumidas pelo Estado Português quando, em
1982, ratificou a Convenção Internacional sobre Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação Racial, aprovada pelas
Nações Unidas em 21 de Dezembro de 1965.
A proibição da discriminação racial tem em Portugal pleno
acolhimento constitucional. Desde logo no artigo 13º da Lei
Fundamental, que se refere ao princípio da igualdade, segundo o
qual, "todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e
são iguais perante a lei" e "ninguém pode ser
privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer
direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência,
sexo, raça, língua, território de origem, religião,
convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação
económica ou condição social". Mas também no artigo
15º, que dispõe que "os estrangeiros e os apátridas que
se encontrem ou residam em Portugal gozam dos direitos e estão
sujeitos aos deveres do cidadão português", exceptuados os
direitos políticos, o exercício de funções públicas que não
tenham carácter predominantemente técnico e os direitos e
deveres reservados pela Constituição e pela lei exclusivamente
aos cidadãos portugueses.
Acontece porém que o tratamento legislativo da discriminação
racial (definida na referida Convenção Internacional como
"qualquer distinção, exclusão, restrição ou
preferência fundada na raça, cor, ascendência na origem
nacional ou étnica que tenha como objectivo ou como efeito
destruir ou comprometer o reconhecimento, o gozo ou o exercício,
em condições de igualdade, dos direitos do homem e das
liberdades fundamentais no domínio político, económico, social
e cultural ou em qualquer outro domínio da vida pública"),
tem sido disperso e lacunar. Por isso, apesar da aplicabilidade
directa do texto constitucional e de alguns progressos
legislativos verificados aquando da última revisão do Código
Penal e da eliminação de algumas (que não todas) as
restrições injustificadas no acesso de estrangeiros ao emprego,
subsistem situações em que a violação do princípio da
igualdade e a prática de discriminações de origem racial, não
se encontram expressamente previstas e sancionadas na
legislação portuguesa. Neste, como noutros aspectos, a
realidade vivida pelos cidadãos fica muito aquém do que dispõe
o texto constitucional.
Daí que a necessidade de ser aprovada legislação destinada a
prevenir e sancionar a discriminação racial, seja hoje, não
apenas generalizadamente reconhecida no plano nacional e mesmo
internacional, como reivindicada pela totalidade dos movimentos
anti-racistas e associações representativas dos imigrantes e
defensoras dos direitos humanos. Já em Novembro de 1997, a
Assembleia da República havia debatido uma Petição de
cidadãos, reivindicando essa aprovação. E mais recentemente, o
aperfeiçoamento da legislação contra a discriminação racial,
foi defendida pelo Alto Comissário para a Imigração e as
Minorias Étnicas e recomendada num recente relatório sobre
Portugal aprovado pelo Comité das Nações Unidas para a
Eliminação da Discriminação Racial.
Prevenir discriminações
O Projecto de Lei apresentado pelo PCP, visa prevenir a discriminação racial sob todas as suas formas e sancionar a prática de actos que se traduzam na violação de quaisquer direitos fundamentais, ou na recusa ou condicionamento do exercício de quaisquer direitos económicos, sociais, ou culturais, por quaisquer cidadãos, em razão da sua pertença a determinada raça, nacionalidade ou origem étnica, considerando-se como tal:
A subordinação da oferta de emprego, a cessação de contrato de trabalho ou a recusa de contratação;
A discriminação entre trabalhadores;
A recusa de fornecimento de bens ou serviços;
O impedimento ou condicionamento, por acção ou por omissão, do exercício normal de uma actividade económica;
A recusa ou condicionamento de venda, arrendamento ou subarrendamento de imóveis;
A recusa de acesso a locais públicos ou abertos ao público;
A recusa ou limitação de acesso a cuidados de saúde por parte de estabelecimentos de saúde públicos ou privados;
A negação, condicionamento ou limitação da admissão em estabelecimentos de ensino públicos ou privados;
A constituição de turmas ou a adopção de outras medidas de organização interna segundo critérios discriminatórios;
A recusa, condicionamento ou limitação no exercício de direitos perante a Administração directa ou indirecta do Estado, as regiões autónomas ou as autarquias locais;
A produção ou difusão de anúncios de ofertas de emprego, ou outras formas de publicidade ligada à pré-selecção ou ao recrutamento, que contenham qualquer especificação ou preferência racial;
E ainda, qualquer acto em que, publicamente ou com intenção de divulgação ampla, qualquer pessoa singular ou colectiva faça uma declaração ou transmita uma informação por meio da qual um grupo de pessoas seja ameaçado, insultado ou aviltado por motivo da raça, cor, nacionalidade ou origem étnica.
Para além de estabelecer as sanções contra-ordenacionais correspondentes a estas práticas e o elenco dos direitos e garantias dos lesados, o Projecto do PCP propõe ainda a criação de um Observatório sobre a Discriminação Racial, a funcionar junto do Alto Comissário para a Imigração e as Minorias Étnicas, com a participação designadamente de representantes dos sindicatos, das associações de imigrantes e das associações anti-racistas.
A importância do PCP
Esta iniciativa não
é um acto isolado na intervenção política e parlamentar do
PCP. Num quadro marcado por retrocessos profundos em matéria de
direitos dos cidadãos não nacionais, decorrentes dos Acordos de
Schengen e das orientações xenófobas prevalecentes na União
Europeia, de que são exemplos as alterações à legislação
sobre estrangeiros e sobre direito de asilo aprovadas pelos
Governos do PSD e do PS, o PCP tem desenvolvido uma acção
intensa e permanente pelo reconhecimento dos direitos dos
imigrantes residentes em Portugal e por um posicionamento do
Estado Português que respeite a dignidade de todos os seres
humanos e que seja compatível com as nossas responsabilidades
como país de imigração e de emigração.
Esta intervenção, traduziu-se num conjunto importante de
iniciativas legislativas em diversos domínios: Da
regularização extraordinária de imigrantes, de alterações à
lei de asilo, de eliminação de discriminações no acesso ao
emprego, de alteração da legislação sobre estrangeiros, de
atribuição de capacidade eleitoral activa e passiva em
condições de reciprocidade e com discriminação positiva dos
cidadãos da CPLP, de apoio às associações de imigrantes, de
simplificação do recenseamento eleitoral, de igualdade no
acesso ao desporto e de prevenção da discriminação racial. De
tudo isto, não resultou apenas a diferença de uma política
alternativa em matéria dos direitos dos estrangeiros. Resultaram
também progressos inequívocos, na eliminação de
discriminações no acesso ao emprego, na dispensa de
intervenção do SEF no recenseamento eleitoral, na
discriminação positiva dos cidadãos originários da CPLP em
matéria de capacidade eleitoral, na abertura de um processo em
curso de apreciação da lei de estrangeiros, na aprovação na
generalidade de legislação de apoio às associações de
imigrantes, finalmente, na colocação da discriminação racial
na ordem do dia da Assembleia da República. Progressos que têm
a marca indelével da acção coerente do PCP.
É pois legitima a expectativa de que mais esta iniciativa do PCP
se possa traduzir, até ao final desta legislatura, na
aprovação de uma lei anti-discriminatória de enorme
importância. As manifestações de apoio ao projecto e à
iniciativa do PCP vindas de movimentos anti-racistas e de
associações representativas dos imigrantes, e o facto do PS,
após o anúncio do debate, ter vindo a apresentar um projecto de
lei sobre a mesma matéria, revelam a existência de condições
políticas reais para a aprovação de uma lei contra a
discriminação racial que seja dignificante para o nosso país.