A Demissão da Comissão Europeia
e as piruetas políticas

Por Honório Novo


Em Dezembro de 98, o PE analisa de novo a gestão orçamental de 96 e volta a recusá-la. Exerce a sua competência fiscalizadora e exige à Comissão Europeia (CE) as informações e explicações a que se tem furtado, e que permitam a análise plena daquela gestão orçamental. A rejeição das contas de 96 constitui, simultaneamente, uma profunda crítica à CE por graves acusações de clientelismo, fraude e corrupção, as quais já haviam levado o Tribunal de Contas da UE a idêntica recusa.

O Grupo Socialista vota a favor das contas da Comissão e os seus deputados portugueses anunciaram fazê-lo para evitar a "abertura de uma crise que não contribuiria para o aparecimento do euro nas melhores condições", e por considerarem que a Agenda 2000 proposta pela Comissão era "uma base aceitável, designadamente para os pequenos países e os países do Sul".Lamentam, ainda, "a insensatez dos portugueses que colaboraram numa manobra de verdadeira censura política à Comissão", visando o voto do PCP contra, já que os deputados do PSD se haviam abstido...
Antes desta votação, a CE exercera uma verdadeira chantagem considerando que se as suas contas não fossem aprovadas, o PE deveria ser "consequente" e apresentar uma moção de censura à Comissão...
O Grupo Socialista aceita o "repto" e, na inexistência da figura de moção de confiança, apresenta uma moção de censura à Comissão anunciando desde logo que votaria contra ela. Esperava a recusa massiva da moção de censura e, através dela, a renovação da confiança política na CE
Em Janeiro de 99 crescem as provas de favoritismo e de fraudes na Comissão. O cerco aperta, a relação de forças transforma-se.
O Grupo Socialista procura uma saída para renovar a confiança política na CE. Dá-se por satisfeito com a designação de uma comissão de inquérito independente e, acto contínuo, retira a moção de censura. Só que havia já uma outra que considerava haver suficientes provas que aconselhavam a demissão da CE. Os resultados da votação desta são "históricos": 232 votos a favor, 293 contra, 27 abstenções. Com votos favoráveis do PCP e contra de todos os restantes partidos portugueses...
Curiosas são as declarações então proferidas por estes partidos.
O PS repete-se, anunciando o "fim a uma crise institucional que ameaçava a vitalidade e eficácia da CE", e considera haver "defendido os interesses de Portugal e da Europa que em nada beneficiariam com a queda da Comissão".
O PSD afirma (talvez em nome da AD) ser contra "o enfraquecimento da Comissão", e do interesse de Portugal "evitar um clima de instabilidade política e institucional no momento em que se discute a Agenda 2000".
O PCP considera a Comissão "ainda mais fragilizada e incapaz de enfrentar os importantes assuntos da agenda europeia", pelo que estima "indispensável e urgente iniciar o processo tendente à constituição de um novo Colégio". Acrescenta que os restantes partidos "não só se afirmaram coniventes com situações de clientelismo e corrupção", como renovaram a confiança política numa CE "que sistematicamente tem adoptado posições contrárias aos interesses nacionais".

Os resultados da Comissão de Inquérito e as reacções

Horas antes de divulgadas as conclusões da Comissão de Inquérito, o Secretário de Estado Seixas da Costa, defende que a CE deveria manter-se para bem dos interesses dos países menos poderosos da UE nas negociações da Agenda 2000...
Conhecidas as demolidoras conclusões do inquérito, que, no entanto, nada acrescentaram de factual ao que já era conhecido, o PS e o PSD defendem logo "que o conteúdo do relatório não justifica a destituição automática dos vinte comissários europeus"...
Enquanto o PS detecta no documento "uma certa ambiguidade", valoriza "a estabilidade da vida política europeia" e "não deseja o fim desta Comissão"..., o PSD afirma "não haver nenhuma matéria" no relatório que justifique "uma censura global à Comissão"...
Por seu lado, em Lisboa, durante uma reunião do "movimento europeu", Guterres, tendo a seu lado o primeiro candidato da lista do PS ao PE, pronuncia-se no mesmo sentido...
O PCP vê confirmadas as razões pelas quais "tinha votado a moção de censura", pelo que considera que "a Comissão estava politicamente morta", defende a "demissão em bloco da CE", e disponibiliza-se para, caso tal se não verifique, vir a "apoiar uma nova moção de censura".
No final do mesmo dia, o inevitável acontece. A Comissão demite-se.
O golpe de rins das declarações dos responsáveis dos partidos que, em Janeiro haviam votado contra a moção de censura e que, horas antes, nada viam de grave nas conclusões do inquérito e se esforçavam por manter a Comissão, seria inacreditável se não estivessem documentadas.
Os responsáveis do governo, e do PS e do PSD, que ensaiaram a manutenção da Comissão, não revelaram apenas conivência com a corrupção. Confirmaram igualmente uma certa cultura política.
O "hábito faz o monge" e, para estes partidos, o que tem sido habitual é que as conclusões de inquéritos tenham em Portugal como destino ..."o caixote do lixo". Isto é, mesmo que as suas conclusões apontem para responsabilidades inequívocas, ninguém se demite nem é demitido. Veja-se o que ainda recentemente sucedeu com o caso Optimus, vamos ver o que irá acontecer com outros casos hoje muito falados, seja o da JAE, da Universidade Moderna ou do serviço de informações militares.
Como em Portugal impuseram esta prática, julgaram "normal" que o mesmo iria acontecer com o inquérito à Comissão Europeia. Daí desvalorizarem as conclusões, terem tentado criar na opinião pública a ideia de que nada de grave existia para que, quem advogasse a demissão, ou uma nova moção de censura, fosse apodado de desestabilizador e antieuropeísta...
Só que não estavam a falar sozinhos e existem outras culturas de rigor e de responsabilização política. Sem falar de outras motivações menos claras.
Esta tentativa de branqueamento revela igualmente uma enorme falta de sensibilidade e uma incapacidade de previsão política daqueles partidos, perante o que podia ser decidido em poucas horas. Existia o cenário da demissão da Comissão, por decisão própria, ou pela apresentação de uma nova moção de censura.
Esta ainda lhes permitia insistir na não gravidade das conclusões, sustentar um eventual voto negativo, e fazer de novo a apologia da "estabilidade". Mas os resultados da moção de censura de Janeiro e o acentuar das responsabilidades colectivas da Comissão, apontavam para um aumento dos que votariam agora a censura. Nada disto foram estes partidos capazes de prever, o que, confirmando incapacidades, revela também níveis de informação (até dentro dos seus partidos...europeus) mais que insuficientes para avaliar a situação.

E quanto ao futuro?

Inadmissível foi também a tese enunciada por Guterres e Marcelo para a saída desta "crise".
Ambos defenderam que esta Comissão se mantivesse em gestão até ser nomeada uma outra, depois das eleições para o PE, em Janeiro de 2000. Ou seja, a demissão da CE deveria ser entendida como um "mero número folclórico" sem consequências funcionais, os comissários deveriam continuar a exercer os seus cargos, incluindo Deus Pinheiro - com ainda menor controle democrático por estarem demissionários - durante mais nove meses. Um "mimo" de transparência democrática!..
Responsáveis de outros países e do PE pronunciam-se entretanto pela nomeação de um novo Presidente, já no Conselho Europeu dos próximos dias 24 e 25 deste mês. Perante uma "onda" diferente, os responsáveis do governo português corrigem, de novo tardiamente, a "mira" e passam a incluir nos seus cenários também esta possibilidade. Não "acertam" uma...
O PCP desde logo defendeu o início urgente do processo de nomeação de um novo Presidente da Comissão para reconstituir uma instituição com capacidade política renovada. Com diferentes formas de procedimento, mais e melhor controle, funcionamento mais aberto e transparente. E, fundamental, que tenha como base a modificação essencial de orientações políticas, abandonando a exclusividade do monetário e do financeiro e privilegiando a coesão e os aspectos sociais e do emprego. Não em palavras mas em actos.
Há quem fale numa Comissão mais forte. Mas o que está em causa não é a sua "fortaleza" mas os caminhos que percorre. E este não pode ser caminho único até cair de novo...


«Avante!» Nº 1321 - 25.Março.1999