«Dorme cá hoje»
Sexta feira à noite, entram-me em casa, sem
bater à porta nem pedir licença, os senhores Mário Soares e
Jacques Delors. Era na UM.
De Soares pode dizer-se que o pico da sua prestação se situou
naquele jeito tão seu de fazer da Língua Francesa uma espécie
de pátuá ou, se se preferir, de fundir em dialeto soarês um
Molière e um Camões mais ou menos iletrados. Delors assumiu a
postura que lhe vimos quando, na sequência da vitória do
«não» a Maastricht na Dinamarca, decidiu que se fizessem
tantos referendos quantos os necessários para o «sim» vencer.
Zappinguei de emergência e caí na QUATRO onde me disseram estar
ali a acontecer «um grande momento de televisão». De facto,
assim era: Ruth Marlene, segredava ao ouvido não sei de quem:
0641..., perdão: «Dorme cá hoje». Dou um salto à TRÊS e
fujo a sete pés de uma telenovela brasileira que nunca vi mas
que sei ser igual a todas as que vi e não vi. Estatelo-me na UM,
onde Delors discorria sobre as «duas pernas da União Económica
e Monetária», num tom que me pareceu insinuar a existência de
uma terceira perna sobre a qual, por pudor ou coisa assim, nada
mais adiantou. Na QUATRO, o convite continua: «Dorme cá hoje».
Na TRÊS também a telenovela continua e na UM Soares filosofa
assim: «Não sou pessimista mas o Mundo está mal» - ao que
Delors responde: «Estamos no século da opinião pública».
Esmagado pelo contundente nível de inteligenciação dos dois
eminentes europeístas, escapo-me para a QUATRO: Ruth trava agora
um lancinante diálogo com a irmã Jessica. «De irmã para
irmã», choram o facto de «os homens (incluindo Soares e
Delors) serem todos iguais». Na UM Soares, acutilante e
incisivo, pergunta a Delors o que é, para ele, hoje, «o
socialismo ou a social democracia que é mesma coisa». Delors
responde que o comunismo morreu e que a social democracia não
morreu. E avança a sua tese de que a «social democracia, hoje,
é liberdade, solidariedade, responsabilidade». Pelo rosto de
Soares perpassa o desgosto de não lhe ter ocorrido a ele, antes,
a genial tridefinição. E mais pesaroso fica quando Delors,
adianta a moderníssima ideia de que o que é preciso é criar
uma «nova sociedade» - ideia que, segundo Soares, é filha de
Delors e que, segundo Delors, tem como pai Chaban Delmas. Na
TRÊS continua o pungente drama de dois filhos ingratos que se
viram contra o pai. E Delors explica que as causas das
dificuldades actuais do socialismo democrático se devem ao facto
de «os cidadãos só terem direitos e nenhuns deveres».
Experimento a DOIS: «Se Hitler não tivesse perseguido os judeus
nós teríamos estado com ele» - dizem umas velhas judias que se
safaram à tira dos fornos crematórios onde milhares e milhares
de anti-hitlerianos foram cremados. A Quatro: «passaram por aqui
todas as grandes figuras da música de expressão popular
portuguesa». Na UM a conversa de chacha está a chegar ao fim.
Soares informa que «vamos ter eleiçóes para o PE». Delors já
sabia e diz que apoiará qualquer lista que preencha quatro
condições. Na QUATRO o «grande momento de televisão» fecha
em apoteose: (os homens) «são todos iguais/ e nunca é demais/
jogar à defesa/ não dar o melhor/ sem do seu amor/ se ter a
certeza».
Soares afirma o seu total acordo às quatro condições de
Delors. E, se bem ouvi, fechou assim: «Dorme cá hoje». José
Casanova