O que está em jogo
Registam-se neste país coisas espantosas:
O professor J. H. Saraiva, ex-ministro de Salazar no ministério
que promoveu os gorilas nas Universidades - revela que, afinal,
«Salazar era um antifascista».
Nobre Guedes, apoiante indefectível de Paulo Portas, declara em
plena convenção do PP: «é preciso cumprir Abril!».
O Supremo Tribunal Militar, a quem coube a missão de julgar os
agentes da PIDE - declara prescritos, ficando assim impunes, os
crimes de Rosa Casaco, chefe da brigada que com minuciosa
preparação executou o assassinato do general Delgado, como ele
próprio relatou provocantemente em extensas entrevistas há
tempos concedidas.
A isto podemos juntar o despudor com que promotores e executores
do terrorismo bombista de 1975/76 se têm vindo a gabar
publicamente dos seus crimes (Alpoim Galvão: «já disse e
repito: podem acusar-me de todas as bombas postas até ao 25 de
Novembro»). E, também, o à-vontade com que o agente (e
posteriormente o chefe) da CIA, Carlucci, à data na pele de
«embaixador» dos Estados Unidos, fala do seu papel na
intervenção contra a revolução portuguesa.
Como pano de fundo destes factos continua a campanha, mais
ou menos surda ou ostensiva, para branquear o fascismo, para
apresentar o marcelismo como «uma tentativa de
democratização» suave do país, para apontar como sendo «o
espírito original do 25 de Abril» o projecto spinolista que
pretendia preverter as suas aspirações democráticas, e para
caluniar, insultar e falsear o significado histórico do 25 de
Abril.
Na RTP, nos programas que tem vindo a transmitir sobre o «antigo
regime», sobressai uma esforçada intenção de apresentar «os
aspectos positivos» do «Estado Novo». «Aspectos positivos»
que também o director do «Expresso», J. A. Saraiva, se
apressou a publicitar - em nome da isenção histórica, claro.
Enquanto isso, a pretexto da proposta de reintegração nas suas
carreiras dos militares penalizados por terem participado no 25
de Abril, assistimos ao desencadeamento de uma campanha contra os
capitães de Abril onde vêm a lume ranços de ódio de classe
como os que madame Nogueira Pinto extravasou no «Expresso» sob
o revelador título «o 25 de Abril deles»
Não se está apenas perante uma operação
de falsificação da História e uma campanha para apagar na
memória colectiva o significado libertador do 25 de Abril.
O que está em jogo, na avaliação actual do 25 de Abril é
também, e principalmente, o próprio conteúdo da democracia, e
as perspectivas do regime político que ela instaurou.
O regime salazarista foi, em todas as suas características
fundamentais, pelo seu significado social e pelas suas formas de
exercício de poder, uma ditadura fascista. O «marcelismo» não
foi mais do que um salazarismo sem Salazar, e o projecto do
general Spínola não passava de uma tentativa de marcelismo sem
Marcelo Caetano.
O 25 de Abril quebrou essas tentavivas de manter a essência
social do regime fascista, destruiu as estruturas políticas e
económicas que a sustentavam, e institucionalizou conquistas
alcançadas pela força do movimento popular que configuraram uma
democracia com largas bases e perspectivas de cidadania
política, económica e social.
Quando se pretende fazer a reabilitação do regime fascista e
reduzir o «espírito original do 25 de Abril» às concepções
spinolistas - é para o regresso ao passado que se aponta, contra
as transformações renovadoras e libertadoras do 25 de Abril.
O que exige um redobrar do esforço para aprofundar e renovar a
democracia, dar-lhe um revigorado apoio de massas, mais amplo e
sólido, para a defender contra as tentativas de regressões
reaccionárias, fazendo dela, com os valores de Abril, guia e
garantia de uma sociedade que não se baseie na alienação do
ser humano. Aurélio Santos