Um escritor na armadilha


José Saramago foi a Cuba decerto menos fazer a passagem de ano que estar presente quando do 40.' aniversário da Revolução Cubana. A RTP terá ajustado com ele que uma sua equipa de reportagem o acompanhasse, não decerto para produzir com a sua colaboração mais um libelo acusatório contra a Cuba de Fidel mas sim para registar como decorreria o encontro do escritor com a Ilha. Desse ajuste parece ter resultado o rigoroso exclusivo de que a RTP abundantemente se gabou ao anunciar a transmissão da reportagem. Tudo bom, pois, excepto que a RTP traiu a boa-fé e a confiança do escritor: o telefilme, que abusivamente intitulou de «Cuba segundo Saramago» devera ter-se intitulado, isso sim, «Cuba segundo Alberto Serra». Este é o nome do sujeito que, como jornalista a avaliar pelo que se viu: andou por Cuba mais a ouvir os opositores de Fidel e a catar imperfeições do regime que a acompanhar Saramago e a ouvi-lo.
É claro que a traição da RTP, infelizmente, não é coisa de espantar: sabe-se que há gente em quem não se pode confiar. Aliás, José Saramago também o sabe, mas é capaz de andar um bocado esquecido em consequência dos quilómetros que, em legítima defesa, um dia pôs entre Lisboa e a sua casa.
É de elementar justiça dizer que o Serra fez um bom trabalhinho: não apenas vasculhou o bastante para poder encontrar defeitos (o que, bem se sabe, não é tão difícil como se desejaria e como decerto seria sem as décadas de cerco que Cuba vem suportanto) como também conseguiu não encontrar os numerosos e muito orgulhosos apoiantes da Revolução que qualquer turista de boa-fé, desses que nem sequer são especialmente «de esquerda», encontra quando percorre Cuba. Em compensação, encontrou mais de um anticastrista de língua nada embaraçada pelo medo da terrível repressão policial. Tais felizes encontros não são, porém, surpreendentes depois de vermos um momento da reportagem em que uni jornalista, real ou suposto, em conferência de imprensa realizada em Havana, questionou Saramago sobre declarações que o escritor fez à TSF. Pelos vistos, e salvo melhor explicação, a TSF tem um interessante nível de audição em Cuba. A menos que, neste caso, a transmissão não tenha sido feita pelas ondas artezianas e por satélite mas sim, mais santamente, pelo chamado Espírito-Santo-de-Orelha

Infiltrado na bagagem

Por sinal que a pergunta originou um momento particularmente desagradável na reportagem do Serra. É que, tendo sido perguntado acerca da já proverbial questão dos direitos humanos em Cuba (de alguns, não de todos, não dos que, igualmente inscritos na já cinquentenária Declaração, são diária e tranquilamente violados no chamado «mundo democrático»), Saramago entendeu responder que «nenhum país é uma excepção no que tem a ver com os direitos humanos», o que obviamente significava uma sua distanciação perante eventuais violações em Cuba, mas também a denúncia, infelizmente rara, das violações havidas em países que passam por campeões da democracia e da liberdade. Aconteceu, porém, que o castelhano em que Saramago se exprimiu, porventura não exemplar mas decerto longe do peculiar casticismo com que Mário Soares se exprime em francês, surgiu na tradução legendada sob uma forma totalmente patarata: «nenhum país é uma excepção não tem a ver com os direitos», etc.
Quem leu não terá percebido nada e até pode Ter suspeitado de que Saramago baralhava premeditadamente a resposta. Há-de ter sido um lapso, uma espécie de gralha, um desaire involuntário. Mas não está fora de questão a hipótese de ter sido uma sabotagenzinha desastradamente executada e que, ainda assim, deu algum jeito.
De qualquer modo, entenda-se: este minúsculo momento foi apenas grotesco, e se nele residisse todo o vício que a reportagem comportou estávamos bem todos nós e José Saramago mais que qualquer outro. Porém, o que de facto a RTP nos forneceu foi o resultado de uma verdadeira armadilha em que Saramago serviu de pretexto para mais uma investida anticubana, desta vez com a particularidade especialmente infame de tudo ter sido feito com a sua, decerto, involuntária aquiescência. José Saramago, amigo da Cuba resistente, apoiante da Revolução Cubana, foi de facto instrumentalizado por um sujeitinho que agiu como uma espécie de agente de Miami infiltrado na bagagem do escritor.
Quanto à RTP, essa dá indícios de ter ficado regalada com o trabalhinho do Serra que, aliás, serviu de «deixa» para diversos textos complementares e cúmplices surgidos na chamada grande imprensa. Tão regaladinha ficou a RTP que, não contente com a transmissão da reportagem a horas razoáveis de um serão de fevereiro, caprichou em voltar a transmiti-la agora, às 15 horas de Sábado passado. O que dá azo a que aqui se registe também esse facto, pois repetições de trabalhos desta índole estão longe de serem frequentes. E acções como esta não devem ser esquecidas — Correia da Fonseca


«Avante!» Nº 1321 - 25.Março.1999