Brasil
Início do julgamento do massacre de Carajás


Começou na segunda-feira o julgamento do massacre do Eldorado do Carajás, na aula magna da Universidade da Amazónia, em Belém, no Estado brasileiro do Pará. No banco dos réus estão 141 polícias militares acusados do assassinato de 19 camponeses membros do Movimento dos Sem-Terra, levado a cabo em Abril de 1996.

Um total de 189 jurados vão estudar os vinte e cinco volumes de actas e determinar quem são os responsáveis pelas mortes, num processo que durará até Dezembro com sessões de duas em duas semanas. Serão julgados três polícias de cada vez. Cerca de 500 soldados estão encarregues da segurança.
A acusação argumenta que se tratou de um massacre pré-determinado e recorda que as forças de segurança foram auxiliados por pistoleiros ao serviço dos latifundiários da região. Além disso, as armas entregues para investigação não correspondem às balas encontradas nos cadáveres, o que indicia que o armamento utilizado pelos polícias era de propriedade privada e não do arsenal oficial.
Na primeira sessão estiveram presentes o coronel Mário Colares Pantoja, o comandante José Maria Pereira de Oliveira e o capitão José de Almendra Lameira, os três militares que lideravam o pelotão da polícia militar. A estratégia da defesa consiste em fazer cair a responsabilidade sobre o governador do Pará, Almir Gabriel, que foi avisado da possibilidade dos confrontos.
«No interrogatório, o coronel Pantoja disse claramente em duas ocasiões que a responsabilidade da matança foi do Governo do Pará», referiu o bispo Tomás Balduino, presidente da Comissão Pastoral e acessor da acusação. Balduino sublinhou que este foi um homicídio «claramente político».
Dos 400 assassinatos que foram cometidos contra camponeses entre 1987 e 1996, só seis tinham até agora chegado aos tribunais. Este julgamento é considerado unanimemente como o mais importante da história do Brasil.


Dignidade brasileira

«É o país que está na sala do julgamento, a sua dignidade, a sua imagem externa. Se houver condenados, o Governo e a sociedade sairão vitoriosos», afirmou Edgar Coling, membro do MST, que recebeu recentemente um prémio da Universidade Cândido Mendes do Rio de Janeiro que distingue o trabalho do movimento na educação de crianças, jovens e adultos.
Para Edgar Coling, o Brasil é mundialmente conhecido pelo «futebol, café e mulheres», mas agora «é preciso que nos conheçam também pela dignidade».
O massacre já foi julgado simbolicamente por um Tribunal Internacional, organizado pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara do Senado brasileiro, que condenou o presidente Fernando Henrique Cardoso e os governadores do Pará e Redónia «por não deterem a gana dos latifundiários».
Phillipe Texier, um dos jurados do tribunal e conselheiro da Comissão dos Direitos Humanos da ONU, defendeu que os que executaram e os que deram as ordens deveriam ser julgados individualmente».
«Quem não promove a reforma agrária, seja o presidente ou o ministro, é responsável pelo que acontece», afirmou na ocasião o escritor José Saramago, outro jurado do tribunal.

História e testemunhos

No dia 17 de Abril de 1996, cerca de 1500 trabalhadores rurais, membros e simpatizantes do Movimento dos Sem-Terra (MST), paralisaram a estrada que liga Eldorado do Carajás e Marabá.
O seu objectivo era protestar contra o desalojamento de um acampamento na fazenda da «Macaxeira» e exigir ao Governo do Pará que cumprisse as suas promessas no sentido de fornecer um autocarro que levasse elementos do MST até à capital, onde a resolução do caso seria negociada.
Sob o pretexto de desobstruir a via, 200 polícias militares, armados com pistolas e espingardas, assassinaram a sangue frio 19 camponeses e feriram gravemente outros 69. Alguns sem-terra foram mortos à queima-roupa depois de se renderem. Outros foram executados com foices e machados.
Uma das testemunhas do processo é Ignácio Pereira, que perdeu um filho no massacre e só escapou porque fingiu estar morto. Viajou um total de 100 quilómetros no camião que transportou os cadáveres das vítimas. «As minhas recordações são horríveis e, desde então, já não consegui viver naquele lugar nem voltar a cultivar a terra», conta.
Rita Monteiro, que testemunhou o massacre da janela de sua casa, recorda que, depois da matança, os polícias entraram em sua casa e colocaram numa mesa sacos com sangue coagulado e pedaços de massa encefálica. «Indignei-me e disse-lhes para levarem imediatamente aquele horror da minha casa», explica.
O MST denunciou desde logo que o inquérito policial realizado no âmbito da justiça militar, aberto logo a seguir ao massacre, «foi concluído às pressas». «Não foram realizadas diligências imprescindíveis», acusam, tal como o reconhecimento dos acusados pela vítimas, o exame de resíduos de pólvora nas mãos dos polícias e a análise das fardas.


Percurso e objectivos do MST

O Movimento dos Sem-Terra nasceu em 1984, fruto da articulação de várias estruturas que, no final da década de 70, foram desenvolvendo lutas pela melhoria das condições de vida dos trabalhadores rurais.
«O capitalismo nacional não conseguia mais aliviar as contradições existentes no avanço em direcção ao campo. A concentração da terra, a expulsão dos pobres da área rural e a modernização da agricultura persistiam, enquanto o êxodo para a cidade e a política de colonização entravam em aguda crise», lembra o MST.
Os Sem-Terra têm três grandes objectivos: a terra, a reforma agrária e uma sociedade mais justa. Neste contexto, defende a expropriação das grandes áreas pertencentes às multinacionais, o fim dos latifúndios improdutivos e a definição de uma área máxima de propriedade rural.
O MST propõe ainda a autonomia das áreas indígenas, a democratização da água no Nordeste e a cobrança do Imposto Territorial Rural, cujo dinheiro terá será destinado à reforma agrária.
Nos seus 15 anos de existência, o MST conseguiu que 140 mil famílias conquistassem a terra. O aumento do rendimento dessas famílias foi já comprovada. A educação é uma área privilegiada pelos Sem-Terra, envolvendo mais de 38 mil estudantes e cerca de 1500 professores.



«Avante!» Nº 1342 - 19.Agosto.1999