Brasil
No rescaldo da greve dos camionistas

Uma troika de direita
governa o Brasil

Miguel Urbano Rodrigues


A greve dos camionistas, no final de Julho, fez estremecer o Brasil. Metade dos camiões do pais (um milhão e meio) bloquearam durante dias as grandes estradas, sobretudo na área do eixo São Paulo-Rio. Foi uma paralisação atípica, com aspectos inéditos. A greve foi preparada com antecedência de meses, mas, paradoxalmente, teve um carácter quase espontaneísta, pois desenvolveu-se praticamente sem intervenção da Central Única de Trabalhadores, a CUT. O movimento irrompeu como resposta à decisão do Governo Federal de aumentar as portagens nas auto-estradas e o preço do gasóleo. Mas na realidade assistiu-se a uma explosão de descontentamento de magnitude inesperada cujas causas transcendem um segmento da classe operária.

O presidente Fernando Henrique, pressionado pelo grande patronato, cometeu o erro de ameaçar os grevistas com a intervenção do exército. A iniciativa produziu efeito oposto ao visado pelo poder: fortaleceu o espírito de luta dos camionistas. Transcorridas menos de 24 horas, o governo capitulou, aceitando praticamente todas as exigências dos grevistas. O aumento das portagens foi cancelado bem e o preço do gasóleo manteve-se sem alteração.
Naturalmente, a vitória dos trabalhadores num sector estratégico tão importante constituiu um acontecimento político e social de enorme repercussão no país e em toda a América Latina. Veio confirmar a profundidade do descontentamento popular no Brasil, tornando transparente a fragilidade do governo.
Somente para os europeus, tradicionalmente desinformados sobre o Brasil - incluíndo os portugueses - constituiu surpresa o que se passou.
Contrariamente ao que a engrenagem mediática afirma, a crise brasileira não só persiste como tende a agravar-se. Reencontrei em Julho um Brasil onde cresce a maré do descontentamento provocado pelas efeitos da globalização neoliberal. O desprestígio da administração de Fernando Henrique Cardoso atingiu um nível que começa a preocupar Washington. A quota de popularidade do presidente caiu para 12% segundo as últimas sondagens. O povo tem, aliás, consciência de que FHC perdeu o pouco que lhe restava de poder pessoal.
A reforma ministerial, anunciada como marco de uma nova política, deixou as coisas pior do que já estavam. Em vez de uma rectificação de rumo, de fachada social-democrata, com cores de terceira via, o que ocorreu foi uma mudança cosmética que manteve intactas as metas e o estilo da velha política. Os novos ministros são homens do sistema, cuja presença no Executivo reforçará as políticas neoliberais em vez de as atenuar.
A remodelação foi cozinhada pela troika que exerce hoje o poder política em representação do grande capital transnacional e nacional: Pedro Malan, o ministro da Fazenda; Armindo Fraga, o ex-homem-de-mão de George Soros, colocado na presidência do Banco Central para fazer cumprir as exigências do FMI; e Pedro Parente, o articulador de políticas indispensáveis à consecução desse objectivo.
O presidente Fernando Henrique, cada vez mais isolado, tende a converter-se numa figura decorativa. A sua intervenção como comunicador não esconde já o inocultável: as grandes decisões não são tomadas por ele; limita-se a referendá-las. Esse apagamento não lhe reduz as responsabilidades como autor intelectual e dinamizador da estratégia que levou o pais ao desastre.
A influência dos próprios partidos oficialmente alinhados com a política do governo é, naturalmente, cada vez menor, na medida em que as grandes linhas da política são traçadas pela troika, em função do cumprimento do acordo com o FMI. A gravidade e a complexidade da crise é, porém, tamanha, e a oposição popular às medidas tão forte, que o acordo foi já reformulado três vezes. A terceira versão, em andamento, começou já a esbarrar com resistências muito fortes.
O que exige agora o FMI?
Agilizar as chamadas «reformas», sobretudo a tributária, a do poder judicial e a eleitoral. Para que o leitor português possa avaliar o espírito dessas reformas e o seu carácter antidemocrático é suficiente esclarecer que o governo pretende introduzir nas eleições o tecto mínimo de 5%, vigente em alguns países europeus. Os partidos que não atingissem essa percentagem de votos não teriam direito a qualquer mandato. Se tal projecto fosse avante, o Partido Comunista do Brasil, o Partido Socialista e outros menores não teriam mais representantes no Congresso. O próprio PDT de Leonel Brizola teria a sua existência ameaçada. O objectivo, transparente, é golpear drasticamente a esquerda.
Outra exigência do FMI é o aumento do preço da gasolina, como medida compensatória da impossibilidade de alterar o do gasóleo. Tal aumento, antes de concretizado, já produziu efeitos negativos. Os preços do metro e dos autocarros subiram imediatamente. Assistimos, assim, aos prenúncios de uma onda de aumentos que inviabilizará a política de contenção da inflação. O velho círculo vicioso.
Uma demonstração de hostilidade aberta às forças progressistas acaba de ser oferecida pelo próprio Presidente FHC ao tornar-se pessoalmente parte de um processo instaurado contra o Partido Comunista do Brasil visando a proibição de acesso aos tempos de antena na televisão. Os argumentos aduzidos na queixa são do género daqueles que os portugueses conheceram antes do 25 de Abril nas campanhas caluniosas do anticomunismo mais primário. FHC chegou ao extremo de acusar os comunistas de «traição à pátria»; não os quer na televisão.
No contexto de uma crise como a brasileira, os escândalos proliferam obviamente, alcançando, em múltiplos terrenos, proporções gigantescas. Mais preocupantes do que os da banca, e de esferas tão diferentes como a Saúde, a Educação e o submundo das polícias são, entretanto, os que deixam entrever a cumplicidade do Poder com as transnacionais. É o caso do anunciado encerramento da fábrica de automóveis da Ford em São Paulo. A consumar-se, a medida significará o desemprego para milhares de trabalhadores paulistas. O mais estranho nesse episódio sombrio é o facto de a Ford, enquanto se prepara para fechar a fábrica de São Paulo, estar prestes a receber centenas de milhões de dólares de incentivos para instalar uma fábrica nova na Bahia. No âmbito da polémica travada sobre o assunto, o presidente FHC foi já acusado frontalmente de favorecer o projecto da Bahia, em prejuízo dos trabalhadores paulistas. Estes, entretanto, reagiram às manobras da transnacional de Detroit deflagrando uma greve que forçou a administração da Ford a um primeiro recuo.
Lutas como essa tendem a multiplicar-se pelo Brasil afora.
A retomada de contacto com a vida brasileira, após um ano de ausência, colocou-me perante um dos mostruários mais expressivos e chocantes da desigualdade social. Não há outro país no mundo onde o abismo entre os de cima e os de baixo seja hoje tão profundo. A miséria mais degradada e a riqueza mais arrogante, lado a lado, crescem, afastando-se em ritmo alucinatório.
Seria romântico identificar nos protestos populares e na vaga de indignação que os acompanha o prólogo de iminentes rupturas revolucionárias. Não há perspectiva de mudanças revolucionárias, a curto prazo, no Brasil. Mas o país, no tocante ao panorama das lutas populares, parece estar grávido de transformações de significado e rumo por ora imprevisíveis. A injustiça social atinge tamanhas proporções que o forasteiro conhecedor da sociedade brasileira sente que as coisas não podem continuar por muito tempo como estão. O Brasil emerge como cobaia e exemplo da irracionalidade do neoliberalismo.
Nesta terra simultaneamente fascinante e vitrina da degradação humana, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra - MST adquire a cada dia a fisionomia de um movimento de novo tipo, com vocação de partido agrário e enormes potencialidades revolucionárias. Os actos e os factos da sua luta tenaz, corajosa, paciente, constituem por si só uma prova indesmentível do alastramento e aprofundamento da luta de classes numa sociedade aviltada e empobrecida pelo neoliberalismo, e dominada e humilhada pelo imperialismo norte-americano.


«Avante!» Nº 1342 - 19.Agosto.1999