Os valores da Revolução Cubana
Por Urbano Tavares Rodrigues
Vivemos hoje,
aqui onde estamos e em quase todo o mundo, transformado em
sociedade de mercado, um momento histórico de desgosto e horror
(que é frenesim consumista para outros ou é o sabor do
dinheiro, que confere o mando e a arrogância à
hiper-burguesia), vivemos, dizia, o horror de assistir à morte
de tantas criaturas pelas guerras e pela fome ou pela vergonha de
viver sem emprego, de se ser empurrado para a existência zero,
que aflige actualmente quatro quintos da Humanidade. Na Ásia das
abissais diferenças de condição, na África votada
conscientemente a um destino de miséria pelas potências ricas
da urbe ou até dentro dessas mesmas potências, os Estados
Unidos ou a União Europeia, onde as desigualdades sociais e
económicas se cavam cada vez mais, enquanto crescem em riqueza
as empresas multinacionais e os privilegiados tecnocratas do
capital global, que prometem, com a sua estratégia de
desenvolvimento, assegurar a felicidade aos trabalhadores, aos
desempregados, aos reformados precoces que aos seus pés estoiram
de indignação.
É assim mesmo. Mas, à imagem deste festival sinistro onde o
ouro da superprodução não chega aos pobres e aos novos pobres
e já não consegue mascarar o pus do sofrimento, existem, apesar
de tudo, algumas vozes que dizem não, espaços de resistência e
de esperança, de entre os quais se levanta a ilha de Cuba,
guiada por uma pleiade de ideólogos, de trabalhadores sem
descanso, de sonhadores acordados como outra não há à face da
terra e onde a maioria da população absorveu ou receveu já de
seus pais, os valores de uma revolução ardente e generosa,
alegre e fraterna que a todos, isto é, a quase todos incutiu o
amor pela pátria, direi mesmo, o orgulho de ser cubano e o gosto
de partilhar. De partilhar bens, palavras, sensações, a euforia
do trabalho bem feito, o prazer das horas de festa. Porque Cuba
é precisamente a aliança do heroísmo e da festa. Ilha de gente
sensual, que dança até quando fala, enérgica e também suave
consoante as horas e os rumos da existência, que em momentos
alevantados de sonho eu já vi crescer até ao gigantismo da
alma, como depois de Playa Girón, ou contentar-se com uma côdea
para salvar a Revolução, garantir a sua continuidade, quando
Cuba, isolada dos outros países pelo bloqueio americano e já
sem a ajuda económica da URSS, parecia ir tocar no fundo da
desgraça ou da renúncia, à míngua de pão e de solidariedade.
Esta ilha, esta gente não é assim por acaso.
Foram, sabemo-lo todos, a ânsia de libertação dos jovens
oprimidos pela ditadura de Fulgêncio Baptista e a vontade de
Fidel na esteira de Marti, o seu talento, coragem e
determinação, a fabulosa equipa que o rodeou no assalto a
Moncada, na aventura do Granma, dos combates da Sierra Maestra,
esses comandantes barbudos, titãs de uma epopeia que deslumbrou
a nossa mocidade, foram esses factores políticos e humanos que
tornaram possível que a ilha de Cuba, bela, ridente, afectuosa,
antiga colónia espanhola sempre cobiçada pelos yankees,
se tornasse no que actualmente é: exemplo, fábrica de ideias e
experiências novas, farol da dignidade humana no continente
americano.
Para essa transformação profunda, para as vitórias da
produção, para o êxito do turismo, para que se possa entender
plenamente a extensão do sacrifício, vivido com o sorriso
cubano, a que o bloqueio americano há tantos anos condenou esse
povo, há que convocar aqui um nome decisivo: o do comandante
Ernesto Che Guevara, o homem singular, que, sendo fadado como era
para a ciência e para a arte, para os mais altos empreendimentos
da inteligência, para o cume da realização pessoal, escolheu a
dádiva absoluta e, lutando pela Revolução, pelo advento de uma
outra América Latina, pela sociedade socialista que teria de ser
a democracia integral, foi morrer longe, mas perto do coração
do sonho, numa plaga esquecida da Bolívia, na escola de La
Higuera, em Valle Grande.
Foram o culto da perfeição, a crença profunda nos valores
morais, a ânsia de acreditar no melhoramento da espécie humana,
numa autêntica sociedade de liberdade, igualdade e fraternidade,
onde o homem fosse irmão do homem e a beleza do pensamento, a
crítica aberta, a superação da existência florescessem nas
artes e na literatura, foram essas virtudes invulgares que o Che
possuiu, que criaram aquela imagem, depois lendária, do
«milagre» socialista que nós vivemos nos anos sessenta e
setenta e que afinal ainda vivemos, com as correcções que o
tempo e a História nos obrigam a fazer nas ideias, nos modelos e
nas práticas que poderiam conduzir, quando a hora chegar, à
transformação da vida em sintonia com os tempos de hoje,
quiçá de amanhã.
Poderá transitar-se da globalização capitalista para uma
globalização socialista? Só o futuro o dirá. Ignoramos os
caminhos do porvir, os meandros do rio da História, não sabemos
como o império do lucro absoluto e do egoísmo total que hoje
governa o mundo se autodestruirá, sob as pressões do movimento
de massas que transporta a revolta e a esperança. Marx está
vivo mais do que nunca, mesmo que tenhamos de o ler de outro
modo.
Na luta que travamos, que travaremos, unindo-nos cada vez mais,
exército dos trabalhadores e dos oprimidos, dos excluídos,
homens de cultura e portadores da mudança, levamos connosco a
alegria, o olhar doce e a energia do Che. E com Cuba estamos e
estaremos.