A
Talhe de Foice
Boas...
o quê?
Os EUA anunciaram na passada sexta-feira a doação de um milhão de dólares para um programa de reabilitação dos hospitais iraquianos. A medida, a concretizar-se - nos tempos que correm é cada vez maior a distância que medeia entre as alegadas intenções e a sua concretização - está longe de poder ser entendida como um acto humanitário. De facto, trata-se mais de uma manifestação da má consciência que pesa sobre a Casa Branca e da necessidade premente de tentar lavar com um punhado de dinheiro as mãos sujas de sangue da administração norte-americana.
O súbito interesse
de Washington em reabilitar os hospitais iraquianos surgiu no dia
seguinte à divulgação de um relatório da Unicef em que se
revela que a mortalidade infantil no Iraque duplicou nos últimos
oito anos, ou seja, desde a imposição do embargo em 1991. Dito
de outro modo, e de acordo com os resultados do estudo, se se
tivesse mantido a taxa de mortalidade registada durante os anos
oitenta, 500.000 crianças teriam sobrevivido.
Meio milhão de crianças mortas em oito anos de embargo em nome
dos direitos humanos é um número brutal para um «efeito
colateral».
Meio milhão de vidas ceifadas por carência dos meios mais
elementares, que existem mas a que os iraquianos não têm acesso
porque as potências ocidentais o impedem, é sem dúvida uma
forma de genocídio impossível de escamotear.
Bem podem os novos humanistas deste fim de século clamar que a
culpa é de Saddam Hussein e do seu regime, que os factos não
deixam de provar a imensa responsabilidade da chamada comunidade
internacional na tragédia humanitária que se vive no Iraque. O
relatório da Unicef revela que mesmo na zona curda controlada
pela ONU (no Norte do país), onde o aumento da mortalidade
infantil é ligeiramente inferior ao registado no resto do
território, o número de crianças menores de cinco anos que
não conseguem sobreviver aumentou nos últimos anos: 90 em cada
1.000 nados vivos morre, mais 10 do que em 1990.
Embaraçadas com estes dados, as autoridades de Londres e
Washington apressaram-se a sacudir a água do capote, com tal
despudor que não hesitaram em esgrimir o aumento da mortalidade
infantil no Norte como argumento contra Bagdad. Morre o dobro das
crianças desde o início embargo, mas do lado da ONU morre-se um
bocadinho menos... Fraca consolação para tanto fervor
humanitário.
Entretanto, continua a guerra que oficialmente acabou há oito
anos. Longe das operações mediáticas, britânicos e
norte-americanos prosseguem de forma metódica o bombardeamento
do Iraque. Nos últimos oito meses, ou seja desde o anunciado
«fim» da operação americano-britânica «Raposa do Deserto»,
em 17 de Dezembro de 1998, foram lançados mais de 1.100 mísseis
contra 359 objectivos. O que significa mais destruição e mais
mortes.
A opinião pública não é chamada a pronunciar-se sobre estes
acontecimentos. Não há reportagens sobre o drama iraquiano, as
imagens das crianças mortas não fazem manchetes, o aumento das
doenças cancerígenas e das mal-formações dos nados-vivos
provocadas pelas radiações de urânio não passam dos
relatórios especializados. A ONU está assoberbada com o Kosovo.
Os sentimentos humanitários esgotaram-se nos campos de
refugiados da Albânia. A crítica foi de férias.
Até que os sinos da aldeia global voltem a tocar a rebate para
uma qualquer outra cruzada inventada pela NATO.
E depois ainda nos vêm dizer que estamos em boas mãos. Anabela
Fino