A arte da manchete


De algum tempo a esta parte somos assaltados pela ideia de que faz falta à imprensa portuguesa um maior sentido de auto-estima e que isso bem podia ser ajudado pela criação, e depois pela sua sucessiva celebração como efemérides incontornáveis, de algumas datas historicamente relevantes.
Neste sentido, já nos tínhamos lembrado que seria uma promissora ideia que, ainda que em diferentes tons e registos, os «media» nacionais passassem a celebrar anualmente o dia 18 de Junho, porque foi nesse dia e nesse mês que no ano passado, e seguramente pela primeira vez em toda a história da imprensa portuguesa, três matutinos publicaram no mesmo dia o mesmo artigo de opinião do mesmo autor, por sinal o Eng. Belmiro de Azevedo, o que há-de querer dizer alguma coisa sobre o poder do personagem, as reverências e obediências que suscita e o tempo político e mediático que vivemos.

Mas não se esgota aqui a nossa desinteressada e inocente contribuição para um tal plano de efemérides. Porque desde já podemos sugerir que, daqui por diante, também o passado dia 13 de Agosto devia ser perenemente evocado, porque foi nessa data que um semanário - o «Independente» - conseguiu a notável, rara e inesquecível proeza de produzir uma «explosiva» manchete ( sobre as viagens dos deputados) com base em elementos supostamente noticiosos ou factuais que já tinham sido divulgados pelo mesmo semanário na sua edição de 4 de Junho, ou seja há 10 semanas !
Na verdade, na página 7 dessa edição do «Independente», sob o título «O DIAP que os carregue» e encimada por seis fotografias, lá era publicado uma peça onde já eram referidos praticamente todos os nomes de deputados que, por intoleráveis intuitos de confusionismo, de injusta generalização das suspeições por todas áreas partidárias e de expedita condenação pela opinião pública, foram na passada sexta-feira enforcados no pelourinho, perdão, listados na manchete daquele jornal.

O encaixe sequencial com o «caso» Luís Filipe Menezes, as proverbiais carências de assunto em Agosto, a refinadíssima «arte» de apresentar a lista dos deputados com o aspecto gráfico de um «fac-simile» de um documento autêntico, a forma invertebrada e descuidada como os telejornais projectaram a manchete do «Independente» (quando é sabido que em televisão ainda mais se agravam as confusões que se estabelecem na cabeça dos telespectadores entre «investigados», «suspeitos», «arguidos» e «culpados») aí estarão a explicar os estragos ( cimentados pelo menos parcialmente em pura calúnia) que foram causados por esta manchete sustentada numa notícia já publicado no mesmo jornal há 70 dias.

E se a alguém lhe repugnar passar a celebrar este notável feito em termos de técnica jornalística, ainda resta a alternativa de passar a celebrar o monumento de cinismo constituído pelo comentário que nessa mesma edição, a directora do «Independente» alinhavou para salvar a face sem prejudicar as vendas.
Na verdade, que outro nome se pode dar a um texto, onde depois de uma manchete com uma lista expressamente identificada como «Deputados Batmen investigados», se vem dizer, em corpo oito e na última página, que «pode ser que a maioria dos deputados da lista não tenha cometido qualquer crime» ? — Vítor Dias


«Avante!» Nº 1342 - 19.Agosto.1999