O importante é o cravo
Quem se lembra hoje do significado da
canção "O importante é a rosa", lançada numa
candidatura de Miterrand e apropriada depois como emblema não
só do Partido Socialista francês como de outros, por esta
Europa fora?
As últimas eleições para o Parlamento Europeu desfolharam
bastante essa rosa e deixaram os partidos da Internacional
Socialista feridos nos espinhos do seu alinhamento e
subordinação às políticas neo-liberais do capital, levando-os
a derrotas que tiveram como expoente comum o fracasso da
candidatura de Mário Soares à presidência do Parlamento,
instrumentalizada em Portugal pelo PS como cartão de crédito
"gold" para garantia de uma pretendida maioria absoluta
nas eleições legislativas.
Este contexto actual na Europa e no mundo
coloca aos comunistas acrescidas responsabilidades - e também
possibilidades.
Não são águas de rosas que poderão dar aos povos, neste
inquietante virar de século, a confiança e a esperança para
alcançar o futuro que lhes é devido e está a ser negado.
Impõe-se aos comunistas o grande esforço de reflexão capaz de
rasgar novos horizontes à sociedade humana, tendo em conta as
muitas e profundas alterações desta segunda metade do século
XX. Colhendo e analisando, com vistas largas e a tempo, as novas
experiências disponíveis, sem cair em especulações que
descaracterizem a essência e novidade do projecto comunista. Sem
esquecer que, numa situação em que dúvidas e inquietações
são legítimas, essa reflexão exige atento rigor para não
confundir o essencial com o aleatório, comporta riscos de
conclusões apressadas e ilusórias, requer uma compreensão
alargada e confiante nas aquisições históricas do ideal
comunista: nós não estamos a começar de novo, temos memória,
retomamos, sim, o testemunho da luta pela libertação do ser
humano.
Pelo nosso lado, comunistas portugueses, temos razões para
confiar na nossa capacidade de contribuirmos também para o
desenvolvimento dessa luta comum, dando novas expressões à
criatividade e audácia com que interviemos na revolução em que
o cravo de Abril atravessou a arma da liberdade.
Cravo é flor resistente, quantas vezes
criado apenas pela própria natureza, sem estufas nem adubos, com
a sua vontade de existir, viver e resistir.
Tivemos a oportunidade, única na Europa deste último meio
século, de viver uma revolução para a qual trouxemos também
os nossos próprios cravos, nascidos em coração clandestino e
floridos num Abril em Portugal que deixou de ser para o mundo
apenas uma canção em voga.
Temos agora de elaborar e fazer avançar as perspectivas e
propostas inovadoras necessárias às novas condições da
sociedade portuguesa. Mas para que elas se projectem na vida real
não basta ser uma reserva de esperança para o futuro. É
necessário mantermos e alargarmos o nosso potencial de
intervenção política e social, com essa conjugação de
pensamento e acção que desde Marx está ligada à própria
concepção dos comunistas da sua forma de estar no mundo.
Estamos agora a pouco mais de um mês de eleições que irão
condicionar em grande medida os próximos anos no nosso país. É
para aí que devem convergir neste momento as nossas energias.
Para que as esperanças, ideias, experiências, perspectivas,
valores, que a revolução dos cravos semeou, não fiquem apenas
como recordação histórica, e permaneçam no património do
movimento comum da luta dos povos por uma sociedade onde o
objectivo seja realmente o desenvolvimento humano.
Afinal, o importante pode ser o cravo. Aurélio
Santos