Variantes
A pouca vergonha


Neste Verão, em vésperas de legislativas, o despique verbal entre o PS e o PSD caiu ao mais baixo nível do insulto e receia-se que possa entrar, a todo o momento, pelo caminho das obscenidades.
É uma pouca vergonha que atinge toda a vida política, desprestigia as instituições democráticas e só pode acentuar as fortes tendências abstencionistas que se têm manifestado nas últimas consultas populares.
Este teatro verbal é tanto mais pernicioso quanto se percebe que é a mera expressão da encarniçada luta pelo poder entre dois partidos (melhor se diria: entre duas clientelas) igualmente comprometidos com os interesses do grande capital, defendo no essencial as mesmas políticas e que têm estado juntos e amigos nas revisões da Constituição, na integração europeia e suas reformas, até nos Orçamentos do Estado, em todas as questões graves que mais tem afectado a vida nacional.
O que se passa hoje no país já lembra o que Guerra Junqueiro dizia dos dois partidos monárquicos que se revezavam no poder, no final do século passado: «iguais um ao outro como as duas metades dum mesmo zero, e não se amalgamando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento - de não caberem todos de uma vez na mesma sala de jantar.»
O episódio em que desbocado Jardim mimoseou o primeiro ministro, António Guterres, com o epíteto de «mafioso» e em que chamou ao PS «uma organização mafiosa», é paradigmático deste estado de coisas especialmente por ter acontecido na presença do novo líder do PSD, Durão Barroso, e ter recebido os aplausos deste.
As reacções que os insultos de Jardim suscitaram da parte do PS não são menos significativas. Apesar dos melífluos apelos à moderação da parte do secretário geral, diferentes estruturas deste partido saltaram a terreiro para apelidarem o presidente do Governo Regional da Madeira de «caso do foro psiquiátrico» e de «padrinho da Mafia» de «estatura moral rasteira» e por aí fora.
O «pitoresco» desta linguagem tem continuado com o Presidente da Câmara de Gaia a chamar «nova pide» à Procuradoria Geral da República, quando veio a público que esta lhe instaurara um processo crime por causa de negócios com «viagens fantasmas» que teria feito há dez anos atrás, quando era deputado. Esta matéria da viagens dos deputados tem sido também terreno para uma intensa troca de «galhardetes» entre Barroso e Guterres, com o primeiro a dizer que o segundo é «cobarde» e este alegando que o seu acusador é «um gerador do caos».
Há muita coisa podre na nossa democracia e não se julgue que não há forças antidemocráticas prontas a explorar em proveito próprio tanta podridão. Foi assim que os fascistas criaram durante a 1ª República a expressão «a porca da política», para a denegrirem toda a acção política, afastar dela participação popular e ficarem eles fascistas com o monopólio de fazerem política... em ditadura.
O traço, no entanto, mais preocupante do presente espectáculo da política nacional são as tentativas desses meios antidemocráticos, mas também dos partidos da alternância governamental e da grande comunicação social, para em relação à podridão que alastra em diferentes domínios tentar meter tudo (isto é, todos os demais partidos) no mesmo saco. É o que se está a passar com a decantada e grave questão das «viagens dos deputados».
Saliente-se, antes de tudo, que, numa questão da maior importância para as instituições democráticas, é por demais estranho que uma dúzia de anos passados sobre os factos suspeitos de irregularidade ou de crime a justiça ainda não tenha conseguido separar o trigo do joio e determinar quem tem culpas e quem as não tem.
Esta circunstância está a favorecer os ataque à instituição parlamentar no seu conjunto e aos deputados de todos os partidos, incluindo aos do PCP que nunca usaram as viagens da Assembleia para qualquer benefício pessoal ou familiar e sempre repudiaram práticas violadoras da lei e da moral.
A lista que o «Independente» se apressou a publicar, e de que outra imprensa, rádios e televisões se fizeram eco, logo que houve conhecimento da incriminação do dirigente do PSD, Luís Filipe de Meneses, e como que a desculpá-lo, é um exemplo dessa exploração ardilosamente manipuladora. Pois, tratando-se da lista de todos os deputados que fizeram viagens ao serviço da Assembleia com montante superior a 350 contos, deixou na opinião pública a falsa ideia de que todos aqueles seriam, pelo menos, suspeitos.
Cabe, então, com toda a urgência, à Procuradoria Geral da República apurar, se ainda não o fez, e restabelecer a verdade, não só em relação ao primeiro ministro, mas em relação a todos aqueles que foram injustamente salpicados pela suspeita.
«Quem não deve não teme», disse Carlos Carvalhas, a propósito.
A pouca vergonha tem os seus culpados que é preciso revelar, tanto no despique verbal que emporcalha a vida política, como na questão das viagens dos deputados que fere o prestígio da Assembleia da República. — Carlos Brito


«Avante!» Nº 1342 - 19.Agosto.1999