AR aprova
por unanimidade projecto de lei do PCP
Violência
doméstica é crime público
A violência sobre as mulheres na família vai passar
a ser crime público. Ainda que não denunciados criminalmente,
à luz da alteração ao Código Penal agora aprovada, os maus
tratos serão reprimidos, de acordo com o projecto de lei do PCP
que os deputados votaram favoravelmente, por unanimidade, faz
hoje oito dias.
Diplomas sobre a mesma matéria subscritos pelo BE e pelo CDS/PP,
com um alcance bastante mais restrito, foram igualmente
aprovados, aquele, por maioria, este, também por votação
unânime da Câmara.
Adoptar medidas de
prevenção e apoio às mulheres sujeitas à violência
doméstica, numa perspectiva articulada da questão, constitui o
objectivo central do projecto de lei da bancada comunista. A
consciência de que se trata de um problema que envolve toda a
comunidade, com origens que radicam num complexo quadro onde as
questões culturais e de mentalidades se entretecem com as
sócio-económicas, leva o Grupo Parlamentar do PCP a considerar
que a repressão penal, não obstante a sua reconhecida
importância, não esgota a intervenção que pode e deve ser
feita neste domínio.
«O triunfo das desigualdades»
Como assinalou no
debate a deputada comunista Odete Santos, principal interveniente
neste processo legislativo em nome do PCP, a não realização
dos direitos sociais e económicos, bem como a falta de medidas
sociais, a par da independência económica das mulheres,
conduzem «ao triunfo das desigualdades, e estas nunca podem ter
qualquer substituto na repressão penal».
O problema é, por conseguinte, mais fundo. É nas relações de
produção capitalista, no neoliberalismo, nos poderes
económicos reinantes, que, no entender da parlamentar do PCP, se
encontra a génese de comportamentos que contribuem para o
triunfo das desigualdades, nomeadamente para a discriminação da
mulher.
É por isso que a «construção social da inferioridade do
género feminino», como lhe chamou Odete Santos, «nasce da
exploração do seu trabalho gratuito em tarefas que devem ser
cumpridas pelo Estado», do mesmo modo que emerge da
«construção social de barreiras biológicas como inerentes ao
estatuto discriminatório da mulher», ou ainda do «trabalho mal
remunerado baseado na decantada natural fraqueza da mulher, na
sua não qualificação».
As responsabilidades do Estado
E se as diferenças
resultantes do sexo caíram Odete Santos deu como exemplo,
a propósito, a recente admissão no Porto de Setúbal de
mulheres estivadoras a verdade é que a cultura que
discrimina a mulher sobrevive por responsabilidade directa das
políticas sociais e económicas. São estas, sublinhou, que
contribuíram para a alta taxa de feminização da pobreza,
enquanto, por outro lado, se mantém uma cultura de laxismo na
efectiva aplicação das leis. A testemunhá-lo, exemplificou,
estão as leis de apoio à maternidade e paternidade, as leis que
garantem para trabalho igual salário igual, as leis que
penalizam o assédio sexual nos locais de trabalho, ou as leis
que garantem através da educação sexual e planeamento familiar
o efectivo direito à saúde reprodutiva.
Para Odete Santos resulta assim claro que o Estado, «por acção
ou omissão, se assume também ele como agressor». «Por acção
explicou - quando deixa campear a precarização do
trabalho de que são vítimas as mulheres, quando fomenta
através de lei o trabalho a tempo parcial forçado» ou «quando
deixa degradar os cuidados de saúde de que são vítimas
preferenciais as mulheres pobres».
«Por omissão acrescentou quando desiste de
combater pelos meios ao seu alcance as discriminações,
nomeadamente no trabalho, quando, para se demitir de funções
sociais, se alimenta do trabalho gratuito das mulheres com as
crianças, jovens e idosos, com as tarefas caseiras fundamentais
para a sobrevivência da família».
Omissões estas que na opinião do Grupo comunista também servem
ao neocapitalismo, uma vez que, como foi lembrado, também ele se
aproveita do «trabalho gratuito» e do «trabalho mal
remunerado» das mulheres para embaratecer os salários.
É por isso que qualquer abordagem à problemática da
violência, incluindo a própria violência doméstica, passa,
obrigatória e centralmente, como sublinhou Odete Santos, por
este conjunto de questões.
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Medidas
de prevenção e apoio às vítimas
A violência
doméstica continua a ser uma realidade presente no quotidiano de
muitas famílias. A dimensão do fenómeno está longe de ser
conhecida. Como não se sabe se tende a regredir ou a crescer.
Dado como certo é que três por cento de todos os crimes
denunciados, segundo as informações estatísticas existentes,
corresponde ao padrão de ofensas corporais no seio conjugal. Um
valor que, está bem de ver, corresponde apenas à ponta do
iceberg. Isto porque, como se sabe, a grande maioria dos casos de
violência não é objecto de denúncia por parte da vítima.
Em causa estão maus tratos sobre as mulheres cuja origem assenta
num conjunto variado de factores, com relevância para os de
natureza cultural e para os sócio-económicos. Indissociáveis
do fenómeno estão ainda razões que se prendem com o sistema
económico, bem como políticas governamentais que agem por
acção ou omissão.
Não obstante o trabalho positivo desenvolvidos por algumas
entidades e organizações não governamentais (ONGs), como
é o caso da Associação «O Ninho», a verdade é que a par da
não aplicação de leis sobre os direitos das mulheres continuam
a faltar medidas na área da prevenção e apoio às mulheres
vítimas de violência. Colmatar essa insuficiência legislativa
constitui um dos objectivos inscritos no diploma do PCP.
Desde logo, como especificou no debate Odete Santos, merecem
destaque as medidas na área da reinserção social, incluindo a
reinserção dos agressores, indo assim ao encontro de textos
internacionais e do Plano governamental contra a violência
doméstica.
Juntando-se à medida de coacção do afastamento do agressor já
proposta pelo PCP em 1991 e constante da Lei N.º 61,
materializada é igualmente a proposta em matéria processual
penal da pena acessória correspondente que consta daquele Plano
Global mas não consta da Lei.
Destaque merece finalmente a medida que prevê que seja
considerado crime público a violência exercida sobre a mulher.
Envolvendo «menosprezo e ódio pela pessoa que se maltrata»,
para a bancada comunista, o crime de maus tratos não é uma
ofensa corporal simples, não podendo por isso deixar de ser
público. «Até porque os maus tratos sucedem-se por ciclos que
envolvem a certa altura um período de lua de mel e de
reconciliação e mesmo antes disso uma relação amor-ódio, que
leva as mulheres a querer desistir da queixa, para serem
novamente vítimas de maus tratos», sustentou Odete Santos.
De acordo com o articulado do projecto comunista previsto está,
entretanto, um novo mecanismo de suspensão provisória do
processo, através de requerimento da vítima, desde que seja uma
decisão livre e consciente validada pelo Ministério Público.
Trata-se de uma solução adoptada pelo PCP depois de ouvidas as
razões de mulheres que estão contra a natureza pública do
crime e que consideram que traria «novas e mais refinadas
violências sobre as mulheres e mesmo a negação do crime pela
própria vítima, levando ao arquivamento de processos, a
absolvições e a um reforço do poder do maltratante».