A «questão religiosa»
Por Jorge Messias
A expressão é de âmbito difuso. Questão religiosa
corresponde a um conteúdo variável. Radica, aparentemente, em
guerras entre confissões opostas, resistências doutrinais
insuperáveis, confrontações rígidas face à evolução e ao
conhecimento, clericalismo contra anticlericalismo, alianças de
interesses com a opressão em choque com as movimentações
sociais contra a repressão, etc.
Na Europa,
por exemplo, o Vaticano tem-se sistematicamente proclamado como
legítimo e superior representante da civilização ocidental. E
essa afirmação leonina de incontido orgulho implicou para a
Igreja um envolvimento histórico com os poderosos. Contradição
imoral. Quando os homens simples, nos tempos modernos,
compreenderam que a mística frequentemente oculta a fraude,
rebelaram-se e começaram a descrer. Uma verdadeira vaga de fundo
retirou multidões dos templos, trouxe os papas e os cardeais à
barra da opinião pública e provocou, por reflexo, profundas
convulsões sociais. A religião cristã identificava-se com a
igreja católica e esta, por tradição, com os poderes
capitalistas dominantes, repressivos e opressores. Quando a
democracia política começou a tomar forma, os estados laicos
caminharam no sentido da sua completa autonomização,
libertando-se ou procurando libertar-se da igreja institucional,
no quadro das reacções ao obscurantismo fundamentalista. Esta
foi a raiz mais antiga do delicado processo a que se convencionou
chamar questão religiosa. O conflito nada tem a ver com a
fé. Os homens que lutavam pela mudança chocaram-se com o
imobilismo eclesiástico e fizeram novas leis, mais
igualitárias. As terras do clero foram nacionalizadas, os seus
lucros financeiros parcialmente incorporados no Estado, o ensino,
a saúde, a segurança social ou o património cultural
laicizados e as novas forças institucionais representativas
chamadas à responsabilidade da administração dos interesses
considerados como nacionais. Regra geral, a igreja não perdeu a
sua liberdade mas, somente, injustos privilégios. Viu
simplesmente contestada a sua completa hegemonia.
Imediatamente se afirmou a reacção clerical, traduzida nas
alianças com as testas coroadas e com a burguesia enriquecida. A
terra cedeu lugar às fábricas, os campos de cultivo aos lotes
urbanos, as sementeiras às massas de betão. A igreja aliou-se,
então, à indústria e aos ricos financeiros, enquanto que os
pobres lutavam pelos seus direitos, apenas armados com a força
das suas mãos.
Entretanto, os sistemas de pensamento social caminhavam para a
sua materialização humana e laica. A metafísica deixava de
responder às exigências das sociedades humanas. No entanto,
embora perdendo terreno a olhos vistos, a igreja institucional
não estava esvaziada dos seus poderes tradicionais : um
ascendente espiritual que dominava as massas, uma profunda
ligação às tiranias e um lugar invejável nas comunidades dos
grandes do cifrão. Até a camadas sociais mais humildes se
revoltaram contra tal situação. Nada tinham a perder senão as
próprias algemas.
Parte da burguesia e do clero solidarizou-se com estas lutas. A
hierarquia católica manteve-se firme em defesa dos seus
privilégios. Neste contexto histórico, que entra pelo século
XX, poderia falar-se, com rigor, na existência de uma
questão religiosa. Ela era um facto.
Surgiu, então, a grande recuperação capitalista. Os conceitos
de lucro e de sucesso sobrepuseram-se a quaisquer outras
considerações. Tal como seria de esperar, os que aparentavam
maior piedade revelaram-se assassinos da fé. O altar deu lugar
à bolsa, o ideal ascético ao materialismo primário.
Esmagadoras massas camponesas, crentes e iletradas, alojaram-se
nos casebres das cidades para deles saírem depois, alienadas
pelo mercado, para destinos indesejáveis das suas vidas :
alguns, ricos, cínicos e amorais.
Outros ( a maior parte ), expulsos das suas culturas
tradicionais, explorados pelos poderosos e lançados ao acaso dos
acontecimentos, vagabundos das construções virtuais e das
mentiras mediáticas dos ricos e poderosos. É ao lado destes
grandes novos senhores que a igreja institucional continua a
alinhar-se. Mas amputada, já, de uma das suas dimensões
essenciais : a do ascendente um dia alcançado sobre as
mentalidades dos povos e das nações.
Quando, agora, o leitor dos jornais ou o navegador das TVs
ou da Internet olha as multidões que os actos do papa arrastam
(massas sempre tendencialmente menores) não consegue evitar
pensar, com cepticismo, que grande parte dos fenómenos que
observa se ficam a dever aos apoios dos patronos multinacionais e
aos efeitos de uma poderosíssima máquina de turismo religioso.
Basta ver-se Fátima e a forma como se organiza. Basta olhar-se
para o aparelho que serve o grandioso espectáculo que é o
Jubileu 2 000.
O preço a pagar pelo sucesso do Vaticano é, no entanto,
pesado. Se os lucros aumentam, deixou de haver fé. Se os
negócios prosperam, desaparece a componente espiritual. Se a
economia capitalista se globaliza, a mensagem cristã esvazia-se
de sentido. A religião perde o seu mistério e a igreja surge
aos olhos dos homens apenas como uma poderosa multinacional.
Depois disto, em rigor, jamais se poderá voltar a falar em questão
religiosa. Um dos membros da contradição - a magia do
sobrenatural - desapareceu. E a polémica religiosa, cada vez
menos credível, esfuma-se gradualmente na linha do horizonte.
Para o cidadão comum torna-se evidente que não é a fé que
lança igrejas contra igrejas, os russos contra os chechenos, os
indonésios contra os chineses do Bornéo ou os albaneses sobre
os sérvios do Kosovo. Não é pela causa de Deus que lutam as
potências mas pelo domínio do comércio das drogas, pelos
lucros dos armamentos, pelo petróleo, pelo saque e pelo controlo
das posições ferozmente disputadas entre os grandes lobbies
e as mafias rivais. Em tudo isto, a religião assumiu o papel de
simples encenação.
Importa, porém, dar ainda outro rumo às nossas análises.
A proposta de leitura que até aqui se avançou condena
claramente a igreja institucional e a sua hierarquia. Mas não se
deve procurar ocultar o facto evidente de que as
ambiguidades geradas em torno da simples construção vocabular
que é a questão religiosa têm outros protagonistas e
outros efeitos perversos.
A questão religiosa funciona, nos meios laicos, como um
cómodo espantalho das consciências políticas. Basta ver-se que
quando um responsável de classe cala ou desvaloriza conteúdos
concretos do movimento religioso e os não analisa
ideologicamente, pactua, nem que seja por omissão, com os
objectivos das forças sinuosas que declara combater. Em nome do
bom-conviver manda o bom-senso que se fique imóvel. Nada dizer
nem fazer para nada arriscar. Mesmo que o preço seja
intolerável, nada mudar para que nada se arrisque. Ora, na luta
de classes, a inocência, a ingenuidade ou o conformismo são
fraquezas intoleráveis. E os revolucionários de todos os tempos
mudaram a terra e a face das coisas por entre incertezas e
perigos. Neste aspecto, nada é diferente do que sempre foi.
Mudar é entrar em ruptura.
Resta acrescentar que as opiniões que aqui se registam são da
exclusiva responsabilidade de quem as assina e não envolvem
qualquer estrutura do PCP. Representam, assim, mais uma prova
evidente da liberdade de expressão que o Partido garante aos
seus militantes. São notas pessoais que envolvem um apelo final
: o de que todos participemos no grande debate de ideias que
esclarece e revitaliza.
A polémica é salutar quando conduz à verdade.