Militares
brasileiros treinam guerrilha
Nova
opção do exército:
EUA inimigo potencial
Por Miguel Urbano Rodrigues
Numa ampla área da floresta amazónica, próximo da
fronteira com a Colômbia, desenvolve-se há meses uma estranha
operação, sob a responsabilidade do exército brasileiro. Os
militares treinam soldados prevendo uma guerra considerada
inimaginável há poucos anos. Desta vez não se trata de um
projecto anti-guerrilha. A tropa é preparada para uma eventual
guerra de guerrilhas contra um invasor potencial. O inimigo seria
o aliado tradicional: os Estados Unidos.
Muita gente na Europa teme que o agravamento da crise brasileira
possa estimular os militares a intervirem novamente.
As Forças Armadas acompanham com preocupação crescente a
tensão social gerada pelas consequências de uma política que
está a empurrar a sociedade brasileira para o caos. O país
parece desagregar-se.
Entretanto, contrariamente ao que aconteceu em épocas
anteriores, a hipótese de um golpe militar é remota.
Nos últimos anos as Forças Armadas mantiveram-se afastadas da
política. O seu silêncio, que tem suscitado interpretações
contraditórias, não traduz, porém, indiferença. São hoje
transparentes os indícios de que os efeitos da política
neoliberal do governo de Fernando Henrique são acompanhados com
inquietação pelos militares. A estratégia das privatizações
e os acordos com o FMI inserem-se numa política de
subordinação crescente aos EUA, considerada perigosa pela
maioria do corpo de Oficiais.
A recente visita do general Mc Caffery, e as declarações que
então fez sobre a possibilidade de uma intervenção militar
norte-americana na Colômbia, adensaram as preocupações
suscitadas pelas ambições dos EUA relativamente à Amazónia.
Intervencionismo arrogante
Em Washington
multiplicam-se declarações oficiais sobre a Amazónia que, pelo
tom e conteúdo, irritam profundamente os militares brasileiros.
Cito uma, como exemplo. O chefe do Serviço de Informações das
Forças Armadas dos EUA, Patrick Hughes, durante um debate,
afirmou em Abril de 1998: «Se o Brasil decidir fazer um uso da
Amazónia que ponha em perigo o ambiente nos EUA, temos de estar
preparados para interromper imediatamente esse processo».
Na Europa, a linguagem não é muito diferente. Uma ameaça de
John Major quando era primeiro ministro do Reino Unido provocou,
concretamente, indignação: «As campanhas ecológicas
internacionais sobre a região amazónica - disse na época -
estão deixando a fase da propaganda para dar início a uma etapa
operativa que, obviamente, pode levar a intervenções militares
directas na região».
Foi nesse contexto que as Forças Armadas brasileiras decidiram
prestar atenção prioritária à sua presença na Amazónia.
Não se limitaram a reforçar as guarnições na área. A tese
norte-americana sobre «soberania limitada» na Amazónia teve
como resposta uma série de iniciativas brasileiras. O Sivam -
Sistema de Vigilância da Amazónia - é actualmente o mais
ambicioso projecto de controlo do ambiente em curso em todo o
mundo. Os radares do Sivam foram concebidos para controlar não
apenas os incêndios mas as centenas de voos ilícitos que
diariamente ocorrem na região. Na prática, porém, não
contribuíram ainda para um combate mais eficaz ao narcotráfico.
A lei aprovada no Congresso, que visa permitir à Força Aérea
Brasileira abater esses aviões, não foi regulamentada. Segundo
apurei, dificilmente o será porque os EUA se opõem, a menos que
as operações aéreas sejam, como no Peru, controladas pela Drug
Enforcement Agency (DEA), cujas ligações com a CIA são bem
conhecidas.
Uma guerrilha inédita
Uma iniciativa mal
recebida em Washington, nomeadamente no Pentágono, foi a
criação em Manaus do Centro de Treinamento de Guerra na Selva,
hoje considerado um dos melhores do mundo.
O jornalista Márcio Moreira Alves - que residiu alguns anos em
Portugal como exilado político - publicou no diário «Globo»,
do Rio, um interessante artigo intitulado «Riscos na Amazónia»
em que transmite as impressões de uma visita a esse Centro,
envolvido numa atmosfera de mistério.
Concretizada a convite do Comando Militar da Amazónia, essa
visita permitiu-lhe revelar ao povo brasileiro factos que
pouquíssima gente conhecia.
Segundo Márcio M. Alves, os soldados e os oficiais «aprendem,
com duros exercícios, a sobreviver na floresta, bebendo água
das plantas e comendo o que podem apanhar, cobras inclusive. Nas
aulas teóricas lêem os trabalhos de Ho Chi Minh, do general
Giap, de Che Guevara. As muitas acções sociais que desenvolvem,
tratando da população civil nos seus hospitais, difundindo o
ensino do português nas escolas, são parte da preparação
militar. É o povo quem sustenta uma guerrilha, como os
americanos descobriram no Vietnam, quando uma divisão vietcong
completa, com artilharia e tudo o mais, brotou da terra em
Saigon, na ofensiva do Tet, que acabou de desmoralizar as
mentiras do Pentágono sobre a «boa condução da guerra».
Se dúvidas houvesse sobre o espírito que hoje prevalece no
Centro de Manaus, o general Lessa, comandante militar da Região
Amazónica, dissipou-as ao convidar parlamentares para uma
visita. O ex-guerrilheiro José Genoíno, hoje deputado do
Partido dos Trabalhadores, falou então, em nome do Congresso a
um batalhão de «guerrilheiros» formado no Centro.
O artigo de Márcio obteve, naturalmente, grande repercussão.
Não faltou quem esperasse um desmentido de fonte militar à
conclusão do jornalista de que as Forças Armadas se preparam
para uma guerra de guerrilhas na selva, contra um eventual
ocupante da Amazónia. Mas o Exército não comentou o artigo.
Nas vésperas de deixar o Brasil, rumo a Cuba, tive a
oportunidade de manter prolongada conversa com um major do
Exército que serviu em Manaus. Veio à baila o artigo de Márcio
Alves.
Apenas me pediu que não lhe citasse o nome por motivos óbvios.
Mas confirmou o fundamental.
«Nós - são palavras suas - na hipótese de uma intervenção
militar na Colômbia que tenha como complemento a instalação de
tropas norte-americanas em território da Amazónia, o que seria
uma forma de intervenção indirecta, temos de estar preparados
para o pior. Sou realista. Se as nossas relações com os EUA
assumissem uma feição conflituosa não disporíamos de força
suficiente para derrotar uma tropa de ocupação norte-americana.
Mas é também uma atitude realista reconhecer que, hoje, o inimigo
potencial do Brasil são os EUA. Numa guerra travada na selva
seríamos melhores do que eles.»
O tema é fascinante.