Não à Guerra!
Seguíamos na madrugada fria à boleia do Zé «algarvio», falador inveterado que fazia as honras do Mini à borla e colorava a atenção dos companheiros de recruta no velho Convento de Mafra. A apreensão pelo êxito da iniciativa em marcha mantinha-nos naturalmente calados, ainda bem que o Zé era algarvio.
Há-de correr bem! foi a mensagem que trocámos antes do último obstáculo à porta de armas.
Tiritava de frio desde que saíra do aconchego da companheira, mas os molhos de vinhetas nas algibeiras do dólman escaldavam o peito.
A acção unitária ultrapassou as expectativas, centenas de vinhetas apareceram coladas nas paredes, portas, janelas, vitrines, etc., do vetusto mosteiro que pela primeira vez em três meses ganhava animação: «7 500 mortos; 25 000 feridos; Bastam! Não à guerra!»
Os «xicos» militaristas estavam em pânico, na formatura das 7.30h não distribuíram a correspondência habitual:
- Luís, apreenderam as cartas com o prospecto!
- Não faz mal! A agitação está porreira!
- Que fazemos ao resto das vinhetas?...
A meio da manhã gelada de Dezembro de 1971, foram arrombar os cacifos da 6ª Companhia, na caserna grande onde estava a malta da luta de 69 em Coimbra, compulsivamente incorporados. Eram todos politicamente suspeitos no processo individual, mas não estavam politicamente activos, por isso não encontraram os pedaços de papel gomado que continuaram a aparecer diabolicamente colados por todo o lado, para desespero do aparelho militarista: «Não jures camarada!»
Foi a palavra de ordem unanimemente seguida na cerimónia pomposa que meteu polícias a vigiarem as filas formadas na praça grande.
- «Filhos da p...! - todos os palavrões do léxico serviam para mexer os lábios na hora em que os pides vigiavam e o general militarão gritava o discurso patrioteiro.
Estávamos bem dispostos na festa de despedida, O Manuel Arons de
Carvalho, o Fausto, o Costa, o Basílio, o Teives (que depois
denunciaria a extraordinária acção) e nós, a «malta do
Barreiro», comunistas, socialistas, democratas, personificando o
sentimento comum contra a guerra colonial e o regime fascista que
a mantinha e a alimentava com carne fresca.
Eram muitos os familiares presentes no repasto que metia do bom e
do melhor para impressionar:
- Filhos da p...! Um rancho miserável e agora este luxo!...
Sorrias com o feitio bonacheirão que sempre mantiveste ao longo
da vida, um semblante sorridente e fraterno que raramente se
alterava. Tinhas os teus pais satisfeitos com o filho cadete e a
Rolo Duarte, companheira de sempre.
- Isto está a correr bem!
Mesmo quando te contei a terrível experiência da passagem pela
Pide em Caxias e a dificuldade em poupar camaradas e amigos,
puseste um sorriso calmo:
- Não foi ninguém preso, pois não!?...
Contra ventos e marés, no mar encapelado em que muitos
companheiros da luta antifascista se foram rendendo aos bem-bons
do sistema capitalista, continuaste coerente, no pensamento e na
acção. Quando vemos na bancada do poder antigos camaradas a
defenderem a vergonhosa e imperialista agressão à Jugoslávia,
a blasfemarem contra a heróica Cuba, a soprarem o fantoche
Savimbi, criado pela Pide, apetece gritar com a força dos vinte
anos que o tempo amadureceu mas não degradou: «Não à
guerra»!
Se for preciso voltaremos a pintar a manta. Contaremos sempre
contigo ao nosso lado!
P.S.: Luís Manuel Carvalho faleceu em 26/3/2000, com 52 anos de vida dedicada à causa do futuro de paz e felicidade que já não veremos, mas que haverá um dia, lá isso haverá!
Armando Sousa Teixeira