Da
agressão ao Kosovo
à estratégia de destruição da Rússia
Por Miguel Urbano Rodrigues
Reunidas em Belgrado, de 24 a 26 de Março p.p., 93 personalidades vindas de 38 países da Ásia, da América, da África e, naturalmente, de diferentes regiões da Europa expressaram a sua solidariedade com o povo da Jugoslávia num Seminário Internacional que envolveu a condenação da guerra de agressão de que ele foi e é vitima e a análise de aspectos da estratégia de dominação imperial dos EUA que hoje configura uma ameaça para toda a humanidade.
Escutei com particular interesse as intervenções dos convidados
russos. Alguns falaram de improviso e nenhum distribuiu textos em
línguas ocidentais. As notas que tomei reflectem a
insuficiência da tradução simultânea.
Mas não é ousado afirmar que o conjunto dessas intervenções
permite, unindo peças dispersas, formar um estranho puzzle do
qual emerge com nitidez o papel negativo, capitulador, que a
Rússia cumpriu como intermediária na guerra de agressão contra
a Jugoslávia.
Pode-se dizer que isso não é novidade. Mas para mim foi
doloroso escutar em Belgrado a confissão da traição (não
encontro outra palavra) tornada pública por homens que
participaram no processo de negociações.
Andranik Migranjan, um destacado analista político que foi
consultor de Chernomirdin quando este era o mediador entre
Washington e Belgrado disse na Conferência o suficiente para
confirmar a evidencia: a Jugoslávia esperava tudo da
solidariedade de Moscovo; e não recebeu sequer migalhas. O
mediador alinhou com o agressor e acabou assumindo no fundamental
as suas exigências.
Migranjan foi muito claro:«era possível travar a agressão».
Após dois meses de bombardeamentos, na Casa Branca e no
Pentágono havia fortes apreensões. A tenaz resistência
jugoslava punha em causa a estratégia da NATO. O fantasma de um
grande fracasso abalava os cimentos frágeis da coligação
agressora.
Os EUA estavam abertos a ir longe no terreno das concessões. Era
transparente. Mas Chernormirdin não deu ouvidos aos
conselheiros. Desconheceu as suas sugestões. Funcionou como
intermediário de Washington. Em vez de defender a causa da
Jugoslávia fez pressão para que aceitasse as exigências
norte-americanas, submetendo-se.
Aquilo que Belgrado obteve - a preservação da soberania e a
recusa do Anexo B de Rambouillet - ficou a deve-lo ao heroísmo
do povo sérvio e não à envenenada mediação russa.
Andanik Migranjan recordou que a Bósnia demonstrara claramente
que Moscovo não podia fazer mais concessões aos EUA. Mas
Ieltsine não extraiu as lições implícitas no diktat de
Dayton, a falsa paz imposta por Washington.
O verdadeiro alvo era a Rússia e isso não foi compreendido. O
Kosovo era a última fronteira a defender. E mais uma vez
prevaleceu a mentalidade capituladora.
Agora a Casa Branca comove-se com o sofrimento do povo tchecheno.
Invoca os direitos humanos. Clinton não sabe geografia.
Provavelmente não faz ideia do que é a Tchétchénia. Mas
pretende já ser árbitro de «uma solução» para a
Tchétchénia.
A rotina da capitulação instalou-se tão solidamente em
sectores marginais da população russa que - assim o afirmou
Migranjan - já se ouvem vozes em Moscovo bradando «renunciemos
à Tchétchénia». Afinal, que valor tem aquele pedaço de
terra, afundado no coração do Cáucaso?.
A ascensão vertiginosa de Putin no firmamento político resultou
precisamente da decisão de defender a Tchétchénia,
interrompendo uma escalada cuja meta é a desagregação da
Federação Russa.
Outro russo presente na Conferência, Konstantin Zatulin,
declarou estar persuadido também de que o desfecho da guerra
contra a Jugoslávia teria sido outro se a Rússia houvesse
assumido como mediadora uma posição firme, ou seja aquela que
respondia à defesa dos seus interesses vitais.
«E o Kremlin - sublinhou - não soube aproveitar a oportunidade
para conter os americanos». O governo russo não entendeu que o
objectivo no Kosovo era a Rússia.
Troquei impressões, muito superficiais, com alguns dos russos
que desceram a Belgrado. Traziam solidariedade. Mas não consegui
sequer entrever a mundividência daqueles homens. Intelectuais
brilhantes, demonstravam lucidez na compreensão da agressiva
estratégia de dominação imperial dos EUA. Muitos foram antes
do ano 91 quadros do desaparecido Partido Comunista da União
Soviética. E, contudo, nem um só pronunciou a palavra
socialismo. Não ouvi deles uma referencia a Marx, não direi já
a Lenine. Porquê ?
Zatulin deixou-me perplexo no final da sua intervenção ao
afirmar não ver qualquer inconveniente no facto de Putin admitir
a adesão futura da Rússia à NATO. Apenas o preocupa a
hipótese de essa hipotética adesão ter como moeda de troca a
Tchétchénia...
Da Rússia à Moscóvia
Não menos
interessante do que as anteriores foi a intervenção de Iuri
Vassilevich Morosov. Esboçou um quadro assustador, mas realista,
do papel da Rússia na estratégia do sistema de poder dos EUA.
Na sua opinião a guerra do Kosovo prosseguiu na Tchétchénia.
Terá continuidade noutros conflitos que Washington tentará
criar (e financiar) artificialmente no território russo,
estimulando tendências separatistas adormecidas. O objectivo é
provocar a repressão, ou seja a intervenção do exército
federal . O sistema mediático cumprirá então o seu papel. Pelo
mundo afora a Rússia será acusada de espezinhar os direitos
humanos e de negar o direito à autodeterminação de um povo que
se bate pela liberdade. Os intelectuais ingénuos voltarão a
morder o anzol. A Rússia aparecerá perante a «comunidade
internacional» (expressão que designa cada vez mais os EUA e os
seus aliados) sentada no banco dos réus.
O folhetim perverso vai repetir-se. A «grande mentira» do
Kosovo funcionou como escola.
Afastar a Rússia do Cáspio e do Leste do Mar Negro parece ser
uma prioridade para os cérebros do sistema de poder dos EUA que
traçam as linhas mestras da estratégia de dominação imperial
perpétua da «nação predestinada» para tornar a humanidade
feliz.
O projecto de desmembramento da Rússia tornou-se um segredo de
polichinelo após as ultimas fugas de documentos top secret.
A expansão para Leste da NATO foi inseparável da «síndroma
russa». Apesar do desaparecimento da URSS e da transformação
de algumas repúblicas da Ásia Central em semi-protectorados, a
Federação Russa - ainda o maior país do mundo, dotado de
riquezas fabulosas em recursos naturais - continua a representar
um potencial económico e militar enorme. Washington tem
consciência de que a Rússia, não obstante o seu atraso
crescente em armas convencionais de alta tecnologia, conta com um
arsenal nuclear capaz de infligir aos EUA danos inaceitáveis.
Daí o projecto de reduzir a Rússia à situação de estado
periférico, arruinado e dócil.
A ânsia de ver concretizado esse sonho é tamanha que a Rússia,
tal como a concebem os estrategos do sistema de poder
norte-americano, já tem nome. Seria a Moscóvia, praticamente
confinada à Europa, como antes da invasão mongol século XIII.
É cedo porém para os EUA lançarem foguetes. Em amplos sectores
das Forças Armadas que salvaram a humanidade da barbárie nazi
permanece vivo o sentimento da dignidade e do patriotismo, como o
demonstra o preâmbulo da nova doutrina militar russa, cujo
projecto causou alarme em Washington.
Na comunicação que apresentei em Belgrado sobre o papel da NATO
como instrumento da estratégia de dominação imperial dos EUA
analisei, aliás, alguns aspectos dessa questão.
_____
O
«Pentagon white paper»
Desde 1992, quando dele tomei conhecimento através do «New York
Times», tenho citado repetidamente um documento secreto do
Departamento de Defesa conhecido hoje como o «Pentagon White
Paper».
Lamentavelmente o sistema mediático internacional esqueceu a
existência do referido documento, precisamente por o considerar
extremamente incómodo.
Foi, naturalmente, gratificante para mim registar que o professor
norte-americano John Catalinotto, colaborador do ex-procurador da
justiça dos EUA Ramsey Clark, atribui também enorme significado
a esse relatório confidencial do Pentágono. Utilizou-o
em Belgrado como mais uma prova da premeditação minuciosa da
estratégia de intervenção dos EUA nos Balcãs.
O episódio conta-se em poucas linhas.
Em Março de 92 o NYK divulgou parágrafos de um relatório
secreto de 46 páginas preparado por oficiais do Pentágono. O
documento sustentava a necessidade de um domínio perpétuo,
político e económico, dos EUA sobre o mundo. Para que o Estado
norte-americano não o perdesse como ocorrera a todos os
impérios anteriores, desde Roma, seria indispensável manter uma
supremacia militar permanente e incontestável.
«O nosso primeiro objectivo - transcrevo - é evitar a
re-emergência de um rival. Em primeiro lugar os EUA devem manter
a liderança necessária para estabelecer e salvaguardar uma nova
ordem que contenha as veleidades de potenciais competidores de
aspirarem um grande papel ou de assumirem uma posição mais
agressiva em defesa dos seus legítimos interesses. Devemos
atender suficientemente os interesses das nações
industrializadas mais desenvolvidas para desencorajá-las de
qualquer projecto de mudança da ordem política e económica
estabelecida. Finalmente, devemos manter os mecanismos que
impeçam potenciais concorrentes de aspirarem ao desempenho de um
grande papel a nível regional ou global».
Quanto à Europa, o recado era transparente: «É de
fundamental importância preservar a NATO como instrumento
principal da defesa do Ocidente e da sua segurança. Devemos
actuar de maneira a evitar o aparecimento de soluções de
segurança exclusivamente europeias não concebidos pela NATO».
Qualquer comentário seria supérfluo.
Erro de antecipação
Recordo que dias
depois visitei o Pentágono como membro da Comissão Política da
Assembleia Parlamentar da UEO, então convidada em Washington.
Levava na mão o NYK e durante um encontro perguntei ao general
que nos recebia o que significava aquele Relatório. Não negou a
autenticidade do documento. Tinha a resposta na ponta da língua.
Subestimando o assunto, declarou, um pouco enfastiado, que o
Relatório fora divulgado por inconfidência, o que lamentava,
pois as conclusões não coincidiam com a orientação do
Pentágono. O papel teria sido arquivado...
Mentia. Transcorridos dois anos os bombardeios da Bósnia e o
diktat de Dayton confirmaram que não havia nada de inocente no
«White paper» do Pentágono. Depois chegou a vez do Kosovo.
Catalinotto lembrou na sua comunicação à Conferencia de
Belgrado que o general Michael Dugan fora afastado do comando da
Força Aérea dos EUA por ter declarado ao NYK, em 29 de Novembro
de 92, que o país deveria dar continuidade à Guerra do Golfo
montando nos Balcãs uma «Operação» que seria o seu
complemento natural. Na opinião de Dugan o Conselho de
segurança da ONU não era confiável, pelo que o seu plano
exigia um cenário que ignorasse as Nações Unidas. Propunha uma
aliança ad hoc englobando os EUA, a França, o Reino
Unido e a Itália, que incumbiriam a NATO de intervir na Bósnia
e na Sérvia através de ataques aéreos maciços contra
objectivos prefixados, usando sobretudo aviões de combate F-15,
F-16, F-18 e F-111, e mísseis Tomahawk. Os alvos seriam
sobretudo as centrais eléctricas, as refinarias e o sistema de
comunicações da Sérvia. Segundo Dugan, «os custos
norte-americanos em sangue e dinheiro seriam modestos comparados
com o traumatismo bosníaco».
O general foi transferido para a Reserva. Cometeu o erro de
antecipar no fundamental o plano que seria aplicado contra a
Jugoslávia, em 1999. Parece ter a vocação de sugerir com
excessivo alarido e antecedência crimes que o Pentágono e a
Casa Branca preparam no maior sigilo. Já em 1990 propusera o
bombardeamento maciço do Iraque meses antes de iniciada a guerra
do Golfo.
John Catalinotto desceu ao pormenor na apresentação de factos
que iluminam bem a cuidadosa e lenta preparação do ataque à
Jugoslávia. Muito antes de iniciada a campanha mediática da
Grande Mentira sobre a «purificação étnica» já os EUA
haviam instalado, em 1995, bases militares na Hungria, na
Macedónia e no Norte da Albânia, com o então inconfessável
projecto de levar a guerra ao Kosovo, no âmbito da sua
estratégia global de domínio universal. Para subalternizar mais
a Europa e ameaçar a Rússia.
É ainda Catalinotto a recordar que, em 4 de Agosto de 1998, a
Administração Clinton levantou uma ponta do véu, confirmando
discretamente que a NATO estava a preparar planos muito
minuciosos para um eventual ataque à Jugoslávia. Fontes
próximas da Casa Branca declararam então ao NYT que eram
previsíveis «múltiplas opções para ataques aéreos punitivos
ou intimidatórios». Em Julho do mesmo ano, o governo da
Albânia informou que 76 oficiais superiores da NATO se
encontravam em Tirana para dirigir as «manobras Albânia - NATO,
próximo da fronteira com o Kosovo.
Uma abundantíssima documentação oficial norte-americana
confirma que o temor de um possível veto chinês ou russo foi
decisivo para que a guerra de agressão contra a Jugoslávia
fosse desencadeada pelas forças da NATO à revelia do Conselho
de Segurança.
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EUA no
banco dos réus
John Catalinotto aproveitou a Conferência de Belgrado para
tornar público, em nome de Ramsey Clark, que o ex-procurador de
Justiça está a organizar através do International Action
Center, de Nova York, um Tribunal Internacional onde a l0 de
Junho próximo será iniciado um processo que já começou a
incomodar a Casa Branca. Os EUA e a NATO serão acusados pela
prática de 19 tipos de crimes de guerra, incluindo o crime
contra a humanidade. Audiências similares estão previstas para
Belgrado, Hamburgo, Praga e Boston.