JAZZ
Frutos amargos

Por Manuel Jorge Veloso



Muitas páginas memoráveis da história do jazz e acontecimentos de bastidores que estiveram directa ou indirectamente na sua origem – os episódios do percurso da vida de um dado músico, este ou aquele solo em determinada actuação pública, um período particular da sua carreira musical ou a especial relevância de tal ou tal disco gravado – radicam às vezes em acasos fortuitos, em importantes apoios prestados, na atenção casual que podem ter despertado.

É por exemplo muito provável que, se não se tivesse verificado a coincidência da persistente intervenção de um produtor e de um crítico, em particular, uma das mais impressionantes gravações em todo um século de vida que o jazz traz já atrás de si jamais tivesse visto a luz do dia.
Esse crítico foi o britânico Leonard Feather, recentemente radicado nos EUA à data destas ocorrências, e esse produtor foi Milt Gabler, o proprietário de uma modesta loja de discos da Rua 42, em Nova Iorque, cuja «carolice» estivera na origem da criação da (então) primeira e única editora independente, cem por cento dedicada à música da sua paixão – o jazz – e a que ele chamara Commodore Records.
Por essa altura, a grande Billie Holiday, uma cantora notável e notória em todo o jazz pela suas naturais e extraordinárias qualidades musicais, mas também pela vida particularmente dramática que conheceu – e cujas incidências podem ser lidas, por exemplo, na crua autobiografia «Lady Sings The Blues», traduzida em português e publicada por A Regra do Jogo, 1982 – fora impedida pela editora a que estava ligada (a poderosa Columbia) de gravar uma canção que pretendia incluir num disco, intimamente ligada a um trágico acontecimento verificado num estado do Sul dos EUA: o linchamento e morte de um jovem afro-americano.
E foi assim que, em 20 de Abril de 39, num estúdio de Nova Iorque, Billie Holiday podia finalmente gravar «Strange Fruit», que se tornaria uma peça musical de culto e cujo texto algumas fontes atribuem ao poeta comunista Lewis Allen e outras fontes indicam como tendo saído da pena da própria Billie. Sem dúvida um poema pungente e de fortíssima carga simbólica (1), que nos falava da dramática opressão e exclusão do povo negro norte-americano numa sociedade continuadamente marcada pela tragédia do racismo, quinze lustros após a proibição oficial da escravatura.
A circunstância de podermos hoje usufruir de reedições de grandes clássicos num suporte prático e sólido como o disco compacto – além do mais em condições de recuperação sonora que nos permitem audição de muito maior qualidade – leva-me hoje a recordar esta canção tão especial, uma vez que ela se encontra entre as obras gravadas por Billie Holiday para a Commodore e cujos master takes foram agora reeditados num CD pela Universal, a multinacional gigante nascida da megafusão de várias editoras detentoras de preciosos catálogos discográficos.
Para além da referida obra-prima, podem ainda ser admiradas outras peças-chave cantadas por Billie, num verdadeiro pico de forma durante as quatro sessões para que foi contratada por Milt Gabler: 20 de Abril de 39 e 25 de Março e 1 e 8 de Abril de 44.
Exemplos: a impressionante interpretação de uma célebre canção, «I’ ll Be Seeing You», expressão da profunda apreensão nascida com a II Guerra Mundial na Europa, após os tempos de esperança, optimismo e ilusões do New Deal de Roosevelt; belas versões de clássicos como «My Old Flame», «Fine and Mellow» ou «How Am I to Know?», sem esquecer outro standard como «She’ s Funny That Way», aqui transformado para «He’ s Funny That Way».
Uma voz sublime, num disco indispensável.

BILLIE HOLIDAY
«The Commodore Master Takes»
Commodore / distr. Universal

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(1) «Southern trees bear strange fruit / Blood on the leaves and blood at the root / Black bodies swinging in the southern breeze / Strange fruit hanging from the poplar trees / Pastoral scene of the gallant south / The bulging eyes and the twisted mouth / Scent of magnolias, sweet and fresh / Then the sudden smell of burning flesh / Here is fruit for the crows to pluck / For the rain to gather, for the wind to suck / For the sun to rot, for the trees to drop / Here is a strange and bitter cry.