Ponto final, parágrafo



Justiça seja feita, deve reconhecer-se que boa parte dos órgãos de informação avaliou o buzinão de passada segunda-feira pelo único critério justo e rigoroso que se impunha, ou seja o da correspondência entre o que realmente foi proposto e o que realmente aconteceu.
Mas, a pensar no futuro e em outras situações, ainda assim vale a pena reter que não faltaram, aqui e ali, algumas expressões do velhíssimo truque que consiste em, por conta própria, elevar antecipadamente a fasquia dos objectivos, para depois atribuir a outros um fracasso relativo.
Já antes de segunda-feira, tínhamos desconfiado que era isso mesmo que estava em preparação quando vimos, em estaladelas do verniz, membros do governo a clamar contra a «insubordinação» e a aludir à prontidão das forças de segurança; quando, no domingo e na TSF, ouvimos o sempre muito serviçal José Magalhães a fustigar os «apelos à Patuleia», e quando, no «Público» de domingo, vimos Salgado Matos a falar de «buzinões a impedir a entrada e a saída (!!?) de Lisboa».
E foi na sequência desta linha que, na segunda-feira e no «Jornal 2» da RTP, até um comentador de sensatez, espírito crítico e seriedade acima da média como José Carlos de Vasconcelos veio afirmar que «eu creio que ficou aquém das expectativas» pois «criou-se uma ideia de que poderia acontecer alguma coisa semelhante ao que aconteceu na ponte no tempo de Cavaco Silva» e que, no «Público» de terça-feira, lá vinha a alusão a que, para o Governo, «as coisas correram melhor do que se poderia esperar».
Sem perder tempo a explicar a alguns que o que pára os carros são os travões e não as buzinas e que um buzinão não é um corte de circulação, registemos antes esta excelente técnica que permite passar a avaliar uma acção de protesto, não em função dos objectivos e características com que responsavelmente foram apresentados, mas em função dos temores, expectativas e ideias criadas em que alguns, pouco razoavelmente ou pouco inocentemente, mergulharam.
Mas, por favor, deixem de esgrimir contra fantasmas e fantasias. Porque nós, de coração aberto e com as veias inundadas de isenção, aqui confessamos tranquilamente que, de facto, com o buzinão nem o país parou, nem os rios começaram a correr para as nascentes, nem os ponteiros do relógio passaram a andar da direita para a esquerda, nem os gatos passaram a ladrar e os cães a miar.
E talvez esta nossa histórica confissão nos dê autoridade para pedir aos que procuraram menorizar ou retirar significado ao importante protesto popular de segunda-feira que se deixem de truques e habilidades e antes confessem tranquilamente que, à hora e nos locais propostos e anunciados (e até noutros), houve um forte, intenso e generalizado buzinão contra a política e as medidas do Governo, ponto final, parágrafo. — Vítor Dias


«Avante!» Nº 1375 - 6.Abril.2000