Militarização da Segurança Interna

A conspiração do silêncio!

José Martins

Nos úl­timos tempos a Se­gu­rança In­terna tem sido ob­jecto de uma vasta e grave ofen­siva por parte de sec­tores con­ser­va­dores alo­jados em áreas de­ci­sivas do poder, ofen­siva que visa in­cutir na Se­gu­rança In­terna uma for­tís­sima ma­triz mi­li­ta­rista.

Neste âm­bito está a apro­vação do Con­ceito Es­tra­té­gico de De­fesa Na­ci­onal (CEDN) – que es­can­cara as portas à in­ter­venção ope­ra­ci­onal das Forças Ar­madas nesta área –, e a re­cente no­tícia de que está em curso uma pro­funda re­es­tru­tu­ração na maior força de se­gu­rança do país – a GNR – , com o ob­jec­tivo de re­forçar ainda mais a sua li­gação mi­litar ao Exér­cito (Diário de No­tí­cias, 17.01.03). 

 

As FA´s e a ordem in­terna 

 

Quanto à pri­meira questão, convém lem­brar que, no quadro cons­ti­tu­ci­onal, a in­ter­venção das Forças Ar­madas (FA’s) na ordem in­terna está ex­clu­si­va­mente cir­cuns­crita aos re­gimes de ex­cepção (es­tado de emer­gência e es­tado de sítio), pe­ríodos em que as li­ber­dades de­mo­crá­ticas estão con­di­ci­o­nadas.

A ati­tude do Go­verno PSD-CDS/​PP al­tera este re­gime de ex­clu­si­vi­dade através de uma sim­ples lei or­di­nária o que, além da sua dis­cu­tível le­ga­li­dade, pode re­pre­sentar um gra­vís­simo salto na es­ca­lada da mi­li­ta­ri­zação da so­ci­e­dade com pre­juízos graves para os di­reitos e li­ber­dades dos ci­da­dãos.

É pre­ciso lem­brar que às FA’s in­cumbe a de­fesa da Re­pú­blica e, neste ob­jec­tivo, con­tri­buírem como factor de co­esão na­ci­onal. As FA’s não estão for­madas nem vo­ca­ci­o­nadas para ac­tu­arem na ordem in­terna. Elas ne­ces­sitam sempre de um ini­migo e in­ter­na­mente esse ini­migo não existe, existe sim o povo por­tu­guês.

O que se pre­tende não é mais do que des­viar as FA’s das suas mis­sões cons­ti­tu­ci­o­nais e co­locá-las ao ser­viço e em mis­sões es­tra­nhas ao pró­prio Es­tado De­mo­crá­tico.

O seu en­vol­vi­mento na ordem in­terna seria factor de fra­gi­li­zação e de des­pres­tígio para a Ins­ti­tuição Mi­litar. Tais de­síg­nios, a con­cre­ti­zarem-se, se­riam o ca­minho mais curto para levar as FA’s ao des­cré­dito e ao de­sastre, e isto há que sal­va­guardar a todo o custo.

 

Mais pa­pistas que o Papa...

 

No to­cante ao pro­jecto de Es­ta­tutos para a GNR, da res­pon­sa­bi­li­dade da hi­e­rar­quia mi­litar em ser­viço nesta força, ele não cor­res­ponde à ne­ces­si­dade im­pe­riosa de ade­quar esta ins­ti­tuição a um mo­delo or­ga­ni­za­tivo mais em con­for­mi­dade com as suas mis­sões e na­tu­reza das Forças de Se­gu­rança. Nele não são des­cor­ti­ná­veis quais­quer ino­va­ções ou al­te­ra­ções que visem atingir ob­jec­tivos de mo­der­ni­zação, de fle­xi­bi­li­zação e ra­ci­o­na­li­zação das es­tru­turas e dos mé­todos que cor­rijam as graves dis­tor­ções exis­tentes – no plano dos efec­tivos, do dis­po­si­tivo, da fi­lo­sofia de missão e do seu en­qua­dra­mento –, bem como quanto às omis­sões no que toca a di­reitos as­so­ci­a­tivos e de re­pre­sen­tação e à dig­ni­fi­cação das con­di­ções de pres­tação do ser­viço e da vida dos seus agentes.

É assim que este pro­jecto se in­sere numa velha es­tra­tégia po­lí­tica (sem o re­co­nhecer ex­pli­ci­ta­mente porque a si­tu­ação pode ainda não ser to­tal­mente fa­vo­rável) de trans­for­mação desta força de se­gu­rança no 4º Ramo das Forças Ar­madas. Como co­ro­lário de todo este plano, re­força-se des­me­su­ra­da­mente o en­qua­dra­mento feito pelo Exér­cito, com a exis­tência no co­mando desta Força de um ge­neral de 4 es­trelas, de três te­nentes-ge­ne­rais e de um nú­mero in­de­ter­mi­nado de ma­jores-ge­ne­rais. A grave con­fir­mação disto mesmo vem-nos pela pena de um ofi­cial su­pe­rior da GNR, em ar­tigo pu­bli­cado no jornal Ex­presso (11.01.03), onde em de­ter­mi­nada al­tura se re­fere: «Desde logo será ne­ces­sário equa­ci­onar e trans­ferir para a GNR:

- As atri­bui­ções e os meios, hu­manos e ma­te­riais, da Po­lícia Mi­litar dos três Ramos das Forças Ar­madas (...);

- Os meios e as mis­sões da Po­lícia Ma­rí­tima (...) com vista a re­tirar à Ma­rinha este ónus de em­pe­nha­mento di­recto na fis­ca­li­zação po­li­cial (...);

- O con­trolo, re­gisto e fis­ca­li­zação de armas e ex­plo­sivos, pre­sen­te­mente a cargo da PSP;

- As mis­sões de se­gu­rança das re­pre­sen­ta­ções di­plo­má­ticas por­tu­guesas no es­tran­geiro (...), bem como os ser­viços de cifra di­plo­má­tica (...)», etc., etc.. 

 

Mais claro não se pode ser!

 

Mas toda esta linha de vin­cu­lação da GNR às Fa’s e prin­ci­pal­mente ao Exér­cito, e da su­jeição da sua vida in­terna e da dos seus agentes à con­dição mi­litar (leia-se ser­vidão) não en­contra su­porte nem na Cons­ti­tuição da Re­pú­blica Por­tu­guesa (CRP) nem tão pouco na pró­pria Lei de De­fesa Na­ci­onal e das FA’s (Lei N.º 29/​82, de 11 de Se­tembro).

Acresce que a CRP, após a sua úl­tima re­visão, no seu Art.º 270.º vem po­si­ci­onar cla­ra­mente a GNR e os seus mem­bros no âm­bito de agentes dos ser­viços e das forças de se­gu­rança. E fá-lo numa si­tu­ação de per­feita igual­dade com a PSP e à luz da os­mose que deve existir nas mis­sões de ambas as forças, com a subs­ti­tuição do Re­gu­la­mento de Dis­ci­plina Mi­litar (RDM) por um Re­gu­la­mento Dis­ci­plinar de con­teúdo ci­vi­lista e pela sua vin­cu­lação or­gâ­nica e de fun­ci­o­na­mento a um mo­delo de po­li­ci­a­mento pre­ven­tivo e de pro­xi­mi­dade.

 

Pre­parar a flecha

 

A fonte de ins­pi­ração para esta «re­forma» na GNR é a mesma que pre­sidiu à pre­tensão de en­vol­vi­mento das FA’s na ordem in­terna. É a face de uma mesma moeda que sim­bo­liza o se­cre­tismo, o au­to­ri­ta­rismo, a ar­bi­tra­ri­e­dade, a cor­rupção, a cen­sura e a re­pressão. É o fazer emergir forças e es­tru­turas di­rec­ci­o­nadas para o con­trolo e vi­gi­lância de ci­da­dãos e da so­ci­e­dade e ao ser­viço de in­te­resses es­tra­nhos ao pró­prio re­gime de­mo­crá­tico e cons­ti­tu­ci­onal.

O país é um todo e não é acei­tável que o ter­ri­tório na­ci­onal e as po­pu­la­ções es­tejam di­vi­didas em ma­téria de se­gu­rança: umas sob a res­pon­sa­bi­li­dade de uma po­lícia civil, com di­reitos e in­ter­li­gada com as co­mu­ni­dades; ou­tras sob a tu­tela de uma força mi­litar, cer­ceada nos seus di­reitos, aquar­te­lada e in­sen­sível ao pulsar dos ci­da­dãos.

É a se­gu­rança dos por­tu­gueses, a sua li­ber­dade, os seus di­reitos e ga­ran­tias que estão em causa. E os por­tu­gueses já afir­maram, em su­ces­sivas formas de ex­pressão, que não querem viver num es­tado po­li­cial e muito menos ver a sua vida de­vas­sada e mi­li­ta­ri­zada.

É também in­com­pre­en­sível o si­lêncio e a inércia de al­guns po­deres ins­ti­tuídos face a estes ce­ná­rios que ofendem o re­gime de­mo­crá­tico saído do 25 de Abril.

Quanto a este Go­verno ele é cada vez mais o al­fobre da me­di­o­cri­dade e do re­ac­ci­o­na­rismo mais puro que existe na so­ci­e­dade por­tu­guesa. Mas também co­meça a ser evi­dente que a Se­gu­rança In­terna e a De­fesa são o cal­ca­nhar de Aquiles deste Go­verno da di­reita mais re­ac­ci­o­nária.

É tempo de pre­parar a flecha de Páris!

De­bate em Lisboa

No pas­sado dia 21 de Ja­neiro, no Salão da Fe­de­ração Por­tu­guesa de Co­lec­ti­vi­dades de Cul­tura e Re­creio, o Grupo de Tra­balho do PCP para as Ques­tões da Ad­mi­nis­tração In­terna levou a cabo um de­bate sobre «Se­gu­rança pú­blica versus Forças de Se­gu­rança – Si­tu­ação e pers­pec­tivas», no âm­bito das ac­ções do PCP in­te­gradas «Em Mo­vi­mento, por um Por­tugal com Fu­turo».

Pre­sentes Do­mingos Abrantes, membro da Co­missão Po­lí­tica e do Se­cre­ta­riado do Co­mité Cen­tral e os mem­bros do Co­mité Cen­tral An­tónio Fi­lipe, Carlos Gon­çalves e José Mar­tins.

Neste de­bate foi sus­ten­tado que para o PCP os pro­blemas da cri­mi­na­li­dade e da se­gu­rança dos ci­da­dãos não são re­so­lú­veis ex­clu­si­va­mente com me­didas de na­tu­reza po­li­cial. A de­linquência, a cri­mi­na­li­dade e os fac­tores de in­se­gu­rança que in­qui­etam a so­ci­e­dade por­tu­guesa têm causas pro­fundas que ra­dicam nos de­se­qui­lí­brios so­ciais cri­ados por uma in­justa re­par­tição da ri­queza e por uma ordem so­cial que gera e acentua fac­tores de ins­ta­bi­li­dade.

Que os pro­blemas de in­se­gu­rança dos ci­da­dãos podem e devem ser mi­no­rados com ade­quadas po­lí­ticas de se­gu­rança, mas não são in­se­pa­rá­veis, ou se­quer mi­no­rá­veis em termos sa­tis­fa­tó­rios, sem ade­quadas po­lí­ticas de em­prego, de in­serção so­cial, de edu­cação e de gestão ur­bana. E, neste sen­tido, foi su­bli­nhada a exis­tência de ra­zões de acres­cida pre­o­cu­pação. É que, com a po­lí­tica eco­nó­mica e so­cial deste Go­verno, com ex­pressão na des­truição do apa­relho pro­du­tivo e de­sem­prego em massa, a so­ci­e­dade por­tu­guesa está con­fron­tada com o cres­ci­mento de fe­nó­menos como a mar­gi­na­li­dade, a de­linquência e a cri­mi­na­li­dade que as­sumem cada dia formas mais or­ga­ni­zadas, so­fis­ti­cadas e vi­o­lentas.

É por isso um pa­ra­doxo que se con­tinue a en­carar e a aceitar como na­tural a im­po­sição de um es­ta­tuto mi­litar, de todo in­cons­ti­tu­ci­onal, à GNR, acen­tu­ando a con­fusão entre aquilo que é po­lí­tica de se­gu­rança e po­lí­tica de de­fesa, com pe­sados pe­rigos para os di­reitos de­mo­crá­ticos dos ci­da­dãos.

No quadro da re­flexão sobre os pro­blemas de fundo da si­tu­ação na­ci­onal em ma­téria de se­gu­rança in­terna e forças de se­gu­rança e con­si­de­rando a ex­tensão e po­pu­lação do país, foi de­fen­dido pelos or­ga­ni­za­dores a ne­ces­si­dade de em­pe­nhar es­forços na re­flexão e es­tudo e, sa­bendo ouvir todas as partes in­te­res­sadas, aqui­latar das van­ta­gens da cri­ação de um Corpo Na­ci­onal de Po­lícia, que in­tegre a PSP e a GNR, com na­tu­reza civil e di­ri­gido por um Di­rector Na­ci­onal.