O Governo fez aprovar na Assembleia da República uma alteração à Lei de Bases da Saúde, que estipula um novo modelo de estatuto jurídico para os hospitais. Posteriormente publicou os decretos-lei da «empresarialização» de 31 unidades hospitalares. Agora prepara-se para, na prática, privatizar os centros de saúde e os restantes hospitais. Este é um processo que não é novo.
O programa de Saúde do Governo, bem como a sua acção, envolta em grande demagogia, defende o tratamento em pé de igualdade de todas as unidades de saúde (públicas ou privadas), e a separação entre pagador e prestador de cuidados de saúde.
A separação entre pagador e prestador significa que quem paga os cuidados de saúde é o Estado, independentemente de quem os presta, (entidades públicas, privadas ou sociais).
Evidentemente que os privados não vão prestar os cuidados que inevitavelmente geram prejuízos. Investigação, Educação para a Saúde, cirurgias de grande complexidade, doentes oncológicos e com SIDA, entre outros, ficarão para o que restar dos serviços públicos.
Para além disso, a campanha existente contra os serviços públicos e a diminuição da sua capacidade de resposta levam, em muitos casos, os utentes a optar pelos serviços privados, o que contribui para o enfraquecimento e desmantelamento dos serviços públicos (dirão então que deixaram de se justificar), ou para a sua privatização.
Ora, esta situação vai levar a um aumento de gastos em saúde, que será canalizado, não para a melhorar a prestação dos cuidados, mas para recuperar e financiar as unidades privadas de saúde.
Com a faca e o queijo na mão, os privados cobrarão o que quiserem.
Disse-o Leonor Beleza, quando era ministra da Saúde (de má memória) e suspendeu as convenções com os privados por existirem fraudes e serem debitados tratamentos não realizados. Imagine-se o que seria agora generalizar este sistema, sem que o Estado possua um sistema credível de fiscalização.
A estratégia da privatização
O processo de privatização que o Governo PSD/PP quer agora generalizar, começou há muito com a entrega a empresas privadas de alguns serviços dos hospitais (vigilância, alimentação, lavandarias), que se revelaram muito mais caras e criaram problemas de desarticulação, de conflitualidade e de falta de qualidade do serviço prestado.
A partir de 1995 inicia-se um período caracterizado pela crescente privatização do vínculo de emprego dos trabalhadores e do regime jurídico das unidades de saúde.
O primeiro caso foi o Hospital Fernando da Fonseca (HFF), mais conhecido por Amadora/Sintra. As deficiências no seu funcionamento são gritantes (falta de médicos e esperas de 10 horas e mais para um atendimento na urgência, etc). O relatório da ARS de Lisboa e Vale do Tejo, confirmado pela Inspecção Geral de Finanças, prova que o HFF custa o dobro do hospital com o qual tem sido comparado, o Hospital Garcia de Orta.
Em 1998 aparece o chamado Novo Regime Jurídico dos Hospitais, aplicado no Hospital de S. Sebastião (HSS), em Santa Maria da Feira, na Unidade Local de Saúde de Matosinhos e no Hospital do Barlavento Algarvio.
Estas unidades foram equiparadas a empresas públicas e o regime do pessoal passou a ser o do Contrato Individual de Trabalho, atomizando as relações laborais, com o que se desarticulam as carreiras e se põe em causa o poder reivindicativo dos trabalhadores, não só em relação a si próprios, mas também em relação às condições de trabalho que se reflectem na qualidade do serviço aos utentes.
Este regime jurídico veio ainda permitir situações de gestão economicista e de flagrante promiscuidade de interesses, bem espelhadas no regulamento de exercício de medicina privada do HSS, onde se afirma que é legitimo dar melhores condições de atendimento a quem paga do que aos doentes do SNS.
Apesar de um dos argumentos utilizados para justificar este tipo de regime jurídico ser a facilidade de contratação de pessoal e uma maior estabilidade, verifica-se que estas unidades não têm menos emprego precário do que as de regime publico e a que rotatividade de pessoal é também elevada.
Uma política ruinosa
Com as recentes alterações à lei, os hospitais são transformados em sociedades anónimas (SA) de capitais (por enquanto) exclusivamente públicos, que passam a ser geridas como as empresas privadas.
O capital social atribuído a cada Hospital-SA é reduzido, sendo que parte dele será ainda absorvido com o pagamento das dívidas. Como a SA só pode endividar-se até 30% do seu capital social, brevemente estes hospitais atingirão a rotura financeira, momento que poderá ser aproveitado para, alegando dificuldades orçamentais, apresentar como «inevitável» a entrada de capital privado.
Aliás, este foi o caminho percorrido pelas empresas públicas quando foi iniciada a sua privatização.
Os diplomas das SA’s prevêem que partes funcionalmente autónomas dos hospitais possam ser entregues a entidades privadas, submetendo a prestação de cuidados de saúde à lógica lucrativa.
Quanto aos novos hospitais a construir, o Governo já decidiu entregá-los ao sector privado, segundo o modelo Private Finance Initiative (PFI), em que os privados constróem e exploram os hospitais durante 30 anos, recebendo do Estado uma anuidade.
Este processo poderá avançar sem que sejam previamente definidas as especialidades, o número de camas e outras características essenciais do hospital, adequado às reais necessidades das populações que vai servir, deixando assim ao privado a decisão sobre o que se vai projectar, construir e financiar.
É uma opção lesiva do interesse público já que, mesmo recorrendo ao endividamento do Estado, estas unidades hospitalares seriam muito mais baratas, desde logo, porque não se pagaria o lucro da entidade privada. Acresce que, segundo um relatório do Tribunal de Contas «o conjunto dos custos de duração do contrato será pago (...) a taxas de mercado que tendem a ser mais altas do que as fixadas para o crédito público». Além do mais não são garantidos mais e melhores cuidados de saúde para as populações.
Também os centros de saúde poderão também ser entregues, na sua totalidade ou partes autónomas, a entidades privadas e a cooperativas de profissionais de saúde.
O Governo irá acabar com o médico de família ao «exportar» para fora dos Centros de Saúde utentes para serem atendidos por um clínico não especializado em medicina geral e familiar; e ao fixar o financiamento dos centros de Saúde por cabeça, irá provocar a degradação da qualidade do serviço prestado e gerar um exponencial aumento de custos.
Com este tecto orçamental os centros de saúde públicos terão um financiamento insuficiente, enquanto que os entregues ao privado procurarão reduzir as despesas à custa dos cuidados de saúde a prestar, de forma a aumentarem as suas margens de lucro.
As propostas do PCP
Por uma gestão e integrada e participada
Um recente projecto de lei apresentado pelo PCP na Assembleia da República, sobre as questões da gestão dos serviços de saúde, foi rejeitado liminarmente pela actual maioria, tal como o havia sido pelo Partido Socialista na anterior legislatura.
Em traços gerais, o modelo que os comunistas preconizam para a gestão dos serviços de saúde assenta numa gestão integrada da unidade hospitalar e do conjunto de centros de saúde que lhe estão adstritos, com participação das populações através das autarquias, dos trabalhadores e dos utentes e equipas de gestão interdisciplinares de profissionais, escolhidas por concurso público e não nomeadas por critérios políticos, mediante a apresentação de um programa de acção.
Tal solução, melhorando a articulação entre cuidados primários (centros de saúde) e hospitais, permitiria aumentar as consultas de especialidade nos centros de saúde, facilitar o acesso a partir destes às especialidades hospitalares e aos exames e análises aí disponíveis, recrutar e gerir da melhor forma os recursos humanos e agilizar a gestão dos recursos materiais.
No que diz respeito em especial aos hospitais é necessário aumentar o período de funcionamento dos serviços rentabilizando-os, nomeadamente dos serviços de diagnóstico e terapêutica, dos blocos operatórios e das consultas externas.
Nesta matéria é decisivo o combate à promiscuidade entre o sector público e o privado. A quase completa ausência de controlo da utilização dos meios do SNS, os fenómenos de objectivo favorecimento de negócios privados por dirigentes e profissionais públicos, são responsáveis por parte da degradação do SNS e da má utilização dos seus meios. De resto, vigora um sentimento de impunidade generalizada que é terreno fértil para estes fenómenos.
Privatizar não é necessário. Necessário é gerir com competência e na defesa do interesse público.
A má experiência britânica
As parcerias público/privado, nomeadamente as Iniciativas para o Financiamento Privado (Private Finance Initiative, PFI na terminologia inglesa), introduzidas no Reino Unido, na década de 90, no âmbito da política de privatizações do governo de Thacther, continuam a ter efeitos devastadores ao nível do atendimento e da qualidade dos serviços de saúde prestados pelo SNS britânico.
Apesar disso, é esta a receita que o Governo PSD/PP pretende aplicar agora à construção de novos hospitais.
A experiência britânica mostra que nos esquemas PFI a média de aumento do custo real em relação ao inicialmente projectado é de 72%. Os novos hospitais têm geralmente menos 20-40% de camas do que aqueles que substituem.
Os custos da negociação dos contratos de PFI’s são 7 vezes superiores aos da tramitação tradicional. Os próprios encargos do endividamento público são 2 a 4% mais baixos do que o privado. Além disso, os vastos e complexos contratos das PFI’s requerem dispendiosos serviços de consultadoria que representam normalmente 8% dos custos do projecto.
O hospital, que tem a maior parte do pessoal em regime de contrato individual de trabalho, dedica parte das instalações exclusivamente à actividade privada e os equipamentos são partilhados pelos doentes do privado e do serviço público.
A assistência clínica continua, por enquanto, com livre acesso, mas a tendência é para a introdução crescente de taxas, possivelmente apresentadas como opções de extras na assistência.
Argumenta-se que PFI não é privatização, uma vez que o Estado poderá recuperar a propriedade dos hospitais no final do contrato de 25 ou 30 anos, mas esquece-se que para isso terá de pagar.
De qualquer maneira, PFI significa a privatização dos edifícios, dos serviços e dos postos de trabalho por 25 ou mais anos.
As deficientes condições de emprego dos trabalhadores dos consórcios das PFI’s - incluindo médicos e enfermeiros – reflectem-se no empenho profissional, diminuindo a eficácia e a qualidade do serviço.
Os serviços do hospital são planeados por empresas privadas, e não por autoridades de saúde, com vista à maximização dos lucros.
As PFI pressionam o SNS para a construção de grandes hospitais apesar de a tendência moderna ser a de proporcionar cuidados em unidades locais, promovendo a saúde pública e a prevenção da doença.
Com os esquemas PFI, os hospitais podem ser vendidos como qualquer outra propriedade e, assim, partes essenciais do SNS podem ser alienadas a multinacionais que só respondem perante os seus accionistas espalhados pelo mundo.
As PFI’s são uma opção política e ideológica que a ser introduzida em Portugal terá graves consequências para a saúde das populações.