Eurodeputados visitam Iraque

«Milhões sacrificados no altar da hipocrisia»

Ilda Fi­guei­redo es­teve entre os 33 de­pu­tados, de 11 países, do Par­la­mento Eu­ropeu que, na pas­sada se­mana se des­lo­caram ao Iraque, le­vando con­sigo um men­sagem de paz. Ao «Avante!», a de­pu­tada do PCP re­lata al­guns as­pectos do quo­ti­diano da­quele país que, desde 1990, sofre os efeitos ter­rí­veis da guerra do Golfo e, so­bre­tudo, do cí­nico em­bargo in­ter­na­ci­onal a que urge pôr fim.

«Avante» - Esta ini­ci­a­tiva dos par­la­men­tares eu­ro­peus, am­pla­mente no­ti­ciada na im­prensa in­ter­na­ci­onal, não teve o apoio ofi­cial do Par­la­mento Eu­ropeu?

Ilda Fi­guei­redo – Não. A de­le­gação ofi­cial do PE para os países da re­gião, de que faço parte, anda há dois anos a pedir uma des­lo­cação ao Iraque, tal como tem acon­te­cido com os ou­tros países do Golfo Pér­sico. Chegou a estar pre­vista uma vi­sita, mas foi can­ce­lada na sequência do 11 de Se­tembro e, até hoje, nunca mais foi au­to­ri­zada.

Por isso, um con­junto de de­pu­tados de­cidiu tomar esta ini­ci­a­tiva, que foi apoiada in­te­gral­mente pelo nosso grupo (Es­querda Uni­tária Eu­ro­peia) e pelos Verdes. Mas também ade­riram a tí­tulo in­di­vi­dual de­pu­tados do Par­tido So­ci­a­lista Eu­ropeu e da Eu­ropa da De­mo­cracia e das Di­fe­renças.

Em­bora não re­pre­sen­tás­semos ofi­ci­al­mente o Par­la­mento Eu­ropeu, fomos porta-vozes das opi­niões pú­blicas mai­o­ri­tá­rias dos nossos países, que são fron­tal­mente contra a guerra, e ma­ni­fes­támos a nossa so­li­da­ri­e­dade ao povo ira­quiano que sofre as con­sequên­cias gra­vís­simas de um em­bargo in­ter­na­ci­onal.


- Foi pos­sível cons­tatar no ter­reno os efeitos do em­bargo?

- Sim. Foi exac­ta­mente com esse ob­jec­tivo que vi­si­támos hos­pi­tais e es­colas, para além de vá­rios con­tactos com or­ga­ni­za­ções hu­ma­ni­tá­rias in­ter­na­ci­o­nais que tra­ba­lham no país. Nos hos­pi­tais falta pra­ti­ca­mente tudo. Faltam me­di­ca­mentos, os equi­pa­mentos de­gradam-se sem po­derem ser re­pa­rados ou subs­ti­tuídos. O em­bargo é total à ex­cepção dos bens ali­men­tares, através do pro­grama «pe­tróleo por ali­mentos». Mas, re­corde-se que este pro­grama é re­cente. Du­rante muitos anos, a po­pu­lação ira­quiana passou por grandes ca­rên­cias ali­men­tares.

- Mas hoje não se passa fome?

- A si­tu­ação pa­rece estar con­tro­lada no es­sen­cial. O Es­tado dis­tribui gra­tui­ta­mente 18 quilos de ali­mentos por mês a cada pessoa e per­mite que sejam adi­an­tadas quan­ti­dades dos meses se­guintes.

- Ainda se ob­servam con­sequên­cias di­rectas da guerra do Golfo?

- Os hos­pi­tais que vi­si­támos re­gistam um ele­vado nú­mero de nas­ci­mentos com graves mu­ta­ções e pensa-se que isso re­sulta de ra­di­a­ções pro­vo­cadas pelo uso de di­fe­rentes tipos de armas du­rante a guerra. Ve­ri­fica-se um au­mento do nú­mero de can­cros, leu­ce­mias e ou­tras do­enças. É claro que a si­tu­ação de pe­núria em que vive a po­pu­lação também con­tribui para agravar este quadro.

No hos­pital pe­diá­trico que vi­si­támos, cheio de cri­anças com do­enças graves, mos­traram-nos ál­buns de fo­to­gra­fias com recém-nas­cidos com­ple­ta­mente de­for­mados. Não es­que­cerei tão de­pressa uma cri­ança que vi, com oito meses, que pe­sava apenas dois quilos e meio. Ou um miúdo que con­tactou con­nosco, que apa­ren­tava ter nove ou dez anos, e que afinal, disse-nos o mé­dico, já tinha de­zas­sete anos. Muitos es­tavam ali à es­pera de morrer já que o hos­pital não dispõe de meios de os tratar de­vi­da­mente.

- E nas ruas, há si­nais do em­bargo?

- O res­caldo da guerra e o em­bargo do­minam toda a vida do Iraque. Muitas lojas es­tran­geiras estão fe­chadas porque não podem im­portar mer­ca­do­rias. O vi­si­tante en­contra em Bagdad uma ci­dade com largas ave­nidas cheias de carros e cons­tru­ções só­lidas, si­nais claros do grande de­sen­vol­vi­mento que se ve­ri­ficou nos anos 80 e que foi in­ter­rom­pido com a guerra e com o em­bargo. Agora tudo está a de­gradar-se. O parque au­to­móvel está a cair de podre, vêem-se ca­na­li­za­ções re­ben­tadas pela cor­rosão, e os edi­fí­cios não são re­pa­rados por falta de ma­te­riais e equi­pa­mentos.


- Também os edi­fí­cios pú­blicos?


- As ca­rên­cias são enormes por toda a parte, in­cluindo no hotel em que fi­cámos. Há muitas es­colas en­cer­radas, aban­do­nadas, porque não é pos­sível subs­ti­tuir desde sim­ples vi­dros par­tidos aos res­tantes equi­pa­mentos. É um au­tên­tico crime o que ali se passa. A Unicef que tenta re­cu­perar al­gumas destas ins­ta­la­ções, con­duziu-nos a uma delas si­tuada nos ar­re­dores de Bag­dade. De ime­diato, vimo-nos ro­de­ados por de­zenas de cri­anças, de seis, sete anos, que não podem ir à es­cola por estar fe­chada.

- Isso tem con­sequên­cias nos ín­dices de es­co­la­ri­dade?

- Todos os in­di­ca­dores de de­sen­vol­vi­mento bai­xaram dras­ti­ca­mente. Se­gundo dados da Unicef, a taxa de mor­ta­li­dade in­fantil evo­luiu de 63 por mil, nos anos 80, para 40 por mil, no início dos anos 90, antes da guerra. Porém, em 1998, estes ín­dices quase que tri­pli­caram, atin­gindo 125 por cada mil nados vivos, e a si­tu­ação ac­tual é cer­ta­mente ainda mais grave, apro­xi­mando-se dos ní­veis dos anos 60.

Cerca de 30 por cento das cri­anças não fre­quentam re­gu­lar­mente a es­cola. Não há li­vros novos e em muitos casos nem papel para tirar có­pias de edi­ções an­tigas. Uma sim­ples es­fe­ro­grá­fica Bic é um ob­jecto raro e vimos as cri­anças dis­pu­tarem-se quando os de­pu­tados co­me­çaram a dis­tri­buir al­gumas que le­vavam. Isto num país que possui as se­gundas mai­ores ja­zidas de pe­tróleo do mundo. Mi­lhões de pes­soas foram re­du­zidas à mi­séria, mas mais grave do que isso é que toda uma ge­ração de cri­anças e jo­vens que está a ser sa­cri­fi­cada por um em­bargo que é um altar da hi­po­crisia in­ter­na­ci­onal.


- Essa in­jus­tiça de que são ví­timas re­flecte-se no com­por­ta­mento das pes­soas na rua? Sente-se a re­volta e von­tade de vin­gança?


- Não. Pelo con­trário. Os ira­qui­anos são de uma grande sim­patia e a vida de­corre com uma nor­ma­li­dade que me es­pantou. Não havia mais po­lícia na rua do que em Lisboa. Fomos tra­tados com todo o ca­rinho por um povo que não de­seja o con­flito. Muitos in­ter­pe­laram-nos per­gun­tando-nos se nós os po­díamos ajudar a evitar a guerra. Sen­timo-nos pe­que­ninos face a este enorme jogo in­ter­na­ci­onal e tudo o pu­demos dizer é que nós es­tamos com eles, não que­remos que morram.

Esta é também a po­sição das or­ga­ni­za­ções hu­ma­ni­tá­rias que nos re­ce­beram. Ma­ni­fes­taram-nos grande pre­o­cu­pação com o agra­va­mento das con­di­ções sa­ni­tá­rias da­quele povo que uma guerra só irá agravar. Pela nossa parte tudo fa­remos para im­pedir esta guerra que nada jus­ti­fica.

O em­bargo
cri­mi­noso

A im­po­sição de um em­bargo total ao Iraque, em Agosto de 1990, e a guerra do Golfo que se se­guiu, em 1991, ti­veram efeitos ca­tas­tró­ficos para o Iraque, na al­tura con­si­de­rado um dos países mais de­sen­vol­vidos da re­gião.

Um re­cente es­tudo, di­vul­gado no final de Ja­neiro pelo Centro para os Di­reitos Eco­nó­micos e So­ciais Eco­nó­micos (CESD), or­ga­ni­zação com sede em Nova Iorque, mostra que as san­ções pra­ti­ca­mente pa­ra­li­saram o país e foram res­pon­sá­veis por graves re­tro­cessos em in­di­ca­dores como a mor­ta­li­dade in­fantil, cui­dados de saúde, abas­te­ci­mento e de água e sa­ne­a­mento pú­blico, for­ne­ci­mento de energia e nu­trição.

Os avanços re­gis­tados na dé­cada de 80 co­lo­caram o Iraque em 96.º lugar na lista da na­ções mais de­sen­vol­vidas, ao lado de países como a China ou o Irão, no que res­peita aos in­di­ca­dores acima re­fe­ridos em con­junto com ou­tras va­riá­veis so­ci­o­e­co­nó­micas como os ní­veis de edu­cação e o ren­di­mento per ca­pita.

Antes da guerra do Golfo, a mor­ta­li­dade in­fantil era de 47 por mil; em cri­anças abaixo dos cinco anos, de 56 por mil. Em menos de uma dé­cada, a mor­ta­li­dade in­fantil passou para 107 por mil, en­quanto, que no es­calão etário até cinco anos, atinge 131 em cada mil nados vivos.

Em 1996, ano em que o Iraque foi au­to­ri­zado a trocar pe­tróleo por ali­mentos, a sub­nu­trição cró­nica já atingia 32 por cento das cri­anças com menos de cinco anos. A pro­dução de elec­tri­ci­dade di­mi­nuiu 50 por cento; es­tima-se que a água po­tável dis­po­nível re­pre­sente entre 40 a 60 por cento dos ní­veis an­te­ri­ores à guerra; o sis­tema de saúde, que abrangia gra­tui­ta­mente 97 por cento da po­pu­lação ur­bana e 71 por cento da po­pu­lação rural, está hoje li­mi­tado a cui­dados de saúde pri­má­rios, não as­se­gu­rando se­quer o tra­ta­mento de do­enças cró­nicas por falta de me­di­ca­mentos e equi­pa­mentos.

Este enorme e rá­pido re­tro­cesso, pro­vo­cado pelo em­bargo das Na­ções Unidas, re­meteu o Iraque para o 127.º lugar na clas­si­fi­cação mun­dial, ao lado do Le­soto, um pe­queno país na África do Sul.

Nunca antes um povo em­po­bre­cera tanto em tão pouco tempo. O CESD com­para a si­tu­ação à de um gi­gan­tesco campo de re­fu­gi­ados, com 26 mi­lhões de pes­soas, aler­tando que um ataque norte-ame­ri­cano cau­sará um imenso de­sastre hu­ma­ni­tário.