O massacre

O Mundo vive já uma cri­ses­tó­rica

Quando esta edição do Avante! chegar às mãos dos nossos lei­tores, é muito pro­vável que o mas­sacre tenha sido ini­ciado: que mi­lhares de to­ne­ladas de bombas te­nham re­ben­tado, já, sobre o ter­ri­tório ira­quiano, que mi­lhares de ho­mens, mu­lheres e cri­anças ino­centes te­nham sido as­sas­si­nados. Se tal não tiver acon­te­cido é, tão so­mente, porque aos Es­tados Unidos da Amé­rica in­te­ressa re­tardar o crime mais uns dias, ou umas horas... De qual­quer forma, a guerra está de­ci­dida desde há muito, desde há muito que o povo ira­quiano está con­de­nado ao mas­sacre.

É hoje claro para um nú­mero cres­cente de pes­soas que os ar­gu­mentos su­ces­si­va­mente in­vo­cados por Bush, as provas anun­ci­adas e apre­sen­tadas, não pas­savam de ten­ta­tivas de con­ferir con­teúdo de­mo­crá­tico às me­didas anti-de­mo­crá­ticas pre­vi­a­mente de­ci­didas, de pro­curar os apoios ne­ces­sá­rios para le­ga­lizar a ile­ga­li­dade que já tinha de­ci­dido co­meter, de dourar com uma pí­lula de­mo­crá­tica o acto pro­fun­da­mente anti-de­mo­crá­tico há muito pla­ni­fi­cado.

Os re­la­tó­rios dos ins­pec­tores da ONU não só não con­fir­maram que o Iraque é um pe­rigo e uma ameaça mun­dial, como des­men­tiram as acu­sa­ções dis­pa­radas pelos EUA. E, como se sabe, as provas apre­sen­tadas pelos res­pon­sá­veis norte-ame­ri­canos, e am­pla­mente di­fun­didas pelos media do­mi­nantes, não pas­savam de fal­si­fi­ca­ções mal ama­nhadas para iludir men­te­captos. Tudo in­dica, aliás, que a maior pre­o­cu­pação de Bush e dos seus ecos, nos úl­timos tempos, era a de acabar com a acção dos ins­pec­tores e, assim, anular a pos­si­bi­li­dade real de estes virem dizer pú­blica e de­fi­ni­ti­va­mente que não há provas de li­gação do Iraque aos ter­ro­ristas da Al-Qaeda e que o Iraque não está a pro­duzir armas de des­truição ma­ciça ou ou­tras proi­bidas pelos que se acham no di­reito de proibir aos ou­tros a posse, ainda que em es­cala re­du­zida, da­quilo que eles pos­suem em larga es­cala.

Apre­sen­tada como «úl­tima hi­pó­tese de paz», como «der­ra­deira ten­ta­tiva di­plo­má­tica», como por­ta­dora de «um por cento de hi­pó­teses de paz», a Ci­meira dos Açores – que fi­cará na His­tória como a Ci­meira da Guerra - não passou de mais uma mas­ca­rada en­ce­nada pelos EUA com a cum­pli­ci­dade dos seus ser­ven­tuá­rios mais ras­teiros e servis e cons­ti­tuiu um aten­tado à in­te­li­gência e à sen­si­bi­li­dade de mi­lhões de pes­soas. É óbvio que a pa­lavra «paz» não foi se­quer uti­li­zada na Ci­meira, na qual par­ti­ci­param apenas as­sa­nhados fal­cões e que de­cidiu o que há muito es­tava de­ci­dido: a guerra. E fê-lo de forma in­so­lente, lan­çando um ul­ti­mato à ONU e in­sul­tando todos os que, em todo o Mundo, se batem pela paz e contra a guerra, pela vida e contra a morte.

O papel do Go­verno – e do pró­prio Pri­meiro Mi­nistro - antes, du­rante e de­pois da Ci­meira, é algo que en­ver­gonha e in­digna a imensa mai­oria dos por­tu­gueses. Ali­nhando in­con­di­ci­o­nal­mente com os EUA em afron­ta­mento à Carta da ONU e ao Con­selho de Se­gu­rança, fora do quadro e à re­velia da União Eu­ro­peia, o Go­verno PSD/​CDS-PP co­loca Por­tugal no pe­lotão da frente que, «sob as or­dens de Bush, será his­to­ri­ca­mente cul­pado do de­sen­ca­de­a­mento de uma guerra de ter­rí­veis efeitos po­lí­ticos, de dra­má­ticas con­sequên­cias hu­manas e de agra­va­mento da si­tu­ação eco­nó­mica in­ter­na­ci­onal com graves re­flexos na eco­nomia por­tu­guesa».

Esta é uma guerra si­nistra, como todas as guerras. Mas com com­po­nentes de pe­rigo acres­cidos: trata-se, as­su­mi­da­mente, de uma «guerra pre­ven­tiva», com todo o sig­ni­fi­cado que tal ex­pressão en­cerra. Esta é uma guerra cujos ven­ce­dores não ofe­recem dú­vidas: os Es­tados Unidos da Amé­rica, o país mais po­de­roso do mundo; de­tentor do maior ar­senal bé­lico al­guma vez na posse de um só país; exímio uti­li­zador de armas quí­micas e bi­o­ló­gicas contra po­pu­la­ções in­de­fesas; único uti­li­zador, até agora, dessa arma de des­truição ma­ciça que é a bomba ató­mica, serão os ven­ce­dores «pre­ven­tivos» desta guerra.

Nos dias (ou nas horas) que se se­guirem à ela­bo­ração deste texto, mi­lhares de to­ne­ladas de bombas cairão sobre o Iraque. E se é ver­dade que o povo ira­quiano será a ví­tima prin­cipal dessa car­ni­fi­cina, não é menos ver­dade que os bom­bar­de­a­mentos do Iraque atin­girão, de uma forma ou de outra, im­por­tantes ins­ti­tui­ções e va­lores de­mo­crá­ticos; atin­girão, com maior ou menor gra­vi­dade, todos os que, no mundo, in­di­vi­dual ou co­lec­ti­va­mente, lutam pela paz, pela jus­tiça, pelos di­reitos hu­manos; atin­girão, também, e de forma brutal, a causa e a luta do povo pa­les­tino: de facto, o mas­sacre do povo ira­quiano per­pe­trado pelo Im­pério norte-ame­ri­cano virá acom­pa­nhado da acen­tu­ação da re­pressão nos ter­ri­tó­rios pa­les­tinos, virá dar força às prá­ticas fas­ci­zantes do go­verno de Is­rael, aos crimes bru­tais por ele co­me­tidos, aos seus des­res­peitos diá­rios, pe­rante a cum­pli­ci­dade dos EUA e dos seus ali­ados, das re­so­lu­ções da ONU re­la­ti­va­mente aos ter­ri­tó­rios ocu­pados.

Lutar contra a guerra e pela paz é a ta­refa pri­o­ri­tária que hoje se co­loca a todos os de­mo­cratas, a todos os ho­mens, mu­lheres e jo­vens de es­querda. Mesmo sa­bendo que os se­nhores da guerra só aceitam a ad­versa opi­nião da opi­nião pú­blica quando a isso são for­çados – mas, por isso mesmo, sa­bendo que quanto mais ampla for a par­ti­ci­pação po­pular nas ma­ni­fes­ta­ções contra a guerra, mai­ores serão as pos­si­bi­li­dades de os forçar a aceitar a paz; mesmo sa­bendo que as bombas cairão sobre o Iraque e ma­tarão mi­lhares, muitos mi­lhares de pes­soas ino­centes – mas, mesmo assim, as­su­mindo que os re­sul­tados da luta que hoje tra­vamos po­derão ser de­ci­sivos para im­pedir ou­tros mas­sa­cres fu­turos.