Em entrevista sobre a visita da delegação da JCP à Palestina, Nelson Silva fala das formas de resistência dos palestinianos à invasão israelita

Histórias do outro mundo

Na Pa­les­tina vive-se num uni­verso pa­ra­lelo. Nos check points, os pa­les­ti­ni­anos tiram um papel há sorte que de­fine o que lhes acon­te­cerá de se­guida. Em He­bron, os is­ra­e­litas cir­culam em pontes para não pisar o chão. In­fe­liz­mente, este mundo é bem real.

Du­rante uma se­mana, uma de­le­gação da JCP vi­sitou a Pa­les­tina, par­ti­lhando o quo­ti­diano dos pa­les­ti­ni­anos, dor­mindo nas suas casas, con­ver­sando sobre a sua si­tu­ação, co­nhe­cendo me­lhor os seus pro­blemas e ma­ni­fes­tando a so­li­da­ri­e­dade dos jo­vens co­mu­nistas por­tu­gueses.

Em en­tre­vista ao Avante!, Nelson Silva, res­pon­sável pela de­le­gação, re­cordou al­guns dos mo­mentos da vi­agem. A vi­sita que mais o marcou foi ao nú­cleo his­tó­rico da ci­dade de He­bron, há mais de dois anos sob re­co­lher obri­ga­tório per­ma­nente. As pes­soas estão con­fi­nadas às suas casas todos os dias, 24 sobre 24 horas. Es­po­ra­di­ca­mente, os is­ra­e­litas de­cretam um le­van­ta­mento de uma, duas ou três horas.

«Quando as pes­soas saem para fazer com­pras não sabem quando será a pró­xima opor­tu­ni­dade de sair», narra Nelson Silva. Para con­tornar esta si­tu­ação, os pa­les­ti­ni­anos têm de ser cri­a­tivos, mas fre­quen­te­mente a única saída é vender os seus bens e contar com a so­li­da­ri­e­dade do resto da po­pu­lação.

Na «ci­dade velha» de He­bron, as casas do rés-do-chão dos pré­dios per­tencem aos pa­les­ti­ni­anos e as do pri­meiro e se­gundo andar foram ocu­padas por is­ra­e­litas. «A di­fe­rença de as­pecto é no­tória», co­menta. «Nas horas em que é le­van­tado o re­co­lher obri­ga­tório, os is­ra­e­litas apro­veitam para fazer tiro ao alvo contra os pa­les­ti­ni­anos com pe­dras, paus, mo­bi­liá­rios, urina e todo o tipo de por­caria. Os pa­les­ti­ni­anos ti­veram de montar uma rede de pro­tecção no meio da rua, por cima das suas ca­beças», ex­plica o di­ri­gente da JCP.

«Vimos uma es­cola pri­mária, agora fe­chada de­vido ao re­co­lher obri­ga­tório, com placas de metal à volta para pro­teger as cri­anças do que os is­ra­e­litas man­davam lá para dentro», de­clara. Os is­ra­e­litas não são abran­gidos pelo re­co­lher obri­ga­tório e não andam na rua. Entre as casas foram cons­truídas pontes me­tá­licas para cir­cu­larem.


Es­tra­té­gias


Uma das formas de re­sis­tência dos pa­les­ti­ni­anos à ocu­pação is­ra­e­lita é fazer a sua vida normal a todo o custo, ou seja, «os es­tu­dantes a tentar ir à uni­ver­si­dade e os tra­ba­lha­dores a ir para os em­pregos e campos de cul­tivo, apesar de terem de passar por pri­va­ções e hu­mi­lha­ções. Outra forma de re­sis­tência é tentar im­pedir que a sua casa seja ocu­pada ou des­truída e per­ma­necer no país. No con­tacto com os pa­les­ti­ni­anos nunca vimos uma de­mons­tração de raiva. Re­sistir é tentar ser feliz, apesar de tudo o que os ro­deia», ga­rante Nelson Silva.

A es­tra­tégia dos is­ra­e­litas, por seu lado, passa pela im­ple­men­tação de cada vez mais co­lo­natos nos ter­ri­tó­rios au­tó­nomos pa­les­ti­ni­anos. «Os co­lonos são es­co­lhidos e o Go­verno con­cede-lhes grandes be­ne­fí­cios eco­nó­micos e fis­cais. As casas são muito ba­ratas», diz.

Os co­lo­natos são al­de­a­mentos fe­chados, mi­li­tar­mente pro­te­gidos, fa­cil­mente iden­ti­fi­cá­veis pela ar­qui­tec­tura ti­pi­ca­mente oci­dental das casas. «Víamos casas brancas, te­lhados ve­me­lhos e jar­dins, cer­cados por muros e arame far­pado, guar­dados por tan­ques, sol­dados e civis ar­mados. Fi­cámos uns dez mi­nutos a olhar para um co­lo­nato, a tentar per­ceber se a mancha verde que víamos era um tanque, com as ob­jec­tivas das má­quinas fo­to­grá­ficas. Até que ti­vemos de fugir porque de­sa­taram aos tiros», re­fere.

O di­ri­gente da JCP acusa Is­rael de tentar per­pe­trar o ge­no­cídio do povo pa­les­ti­niano, mais do que o afastar do ter­ri­tório. «Por exemplo, muitas vezes as am­bu­lân­cias são re­tidas nos check points. Só de­pois dos fe­ridos mor­rerem é que deixam passar. Isto vai contra todas as con­ven­ções in­ter­na­ci­o­nais, no­me­a­da­mente a de Ge­nebra.»


Aten­tado é si­nó­nimo de re­ta­li­ação


Du­rante a es­tadia dos jo­vens por­tu­gueses re­gistou-se um aten­tado sui­cida na ci­dade is­ra­e­lita de Aifa. A re­ta­li­ação he­braica não se fez es­perar e Ja­balia, uma po­vo­ação bem dis­tante do local do aten­tado, foi ata­cada.

«Cada vez que há um aten­tado bom­bista, os pa­les­ti­ni­anos sabem que a re­ta­li­ação pode acon­tecer em qual­quer lado e em qual­quer al­tura. No mo­mento em que sou­bemos do aten­tado es­tá­vamos à pro­cura de um sítio onde comer em Ra­malah e es­tra­nhámos porque não havia nin­guém na rua e as lojas es­tavam fe­chadas. As pes­soas vão para casa com medo dos is­ra­e­litas. A no­tícia foi-nos dada com muita apre­ensão. Eles as­so­ciam au­to­ma­ti­ca­mente o aten­tado à re­ta­li­ação», ga­rante Nelson Silva.

Na sequência do aten­tado, toda a Cis­jor­dânia foi fe­chada e houve uma in­cursão na ci­dade onde o grupo se en­con­trava. «Nós es­tá­vamos no centro de saúde, onde íamos dormir, e es­tá­vamos a tentar ter um am­bi­ente mais des­con­traído para co­me­morar o ani­ver­sário do Par­tido. Co­me­çámos a ouvir tiros e fi­cámos apre­en­sivos, até porque não sa­bíamos bem a ex­tensão do que es­tava a acon­tecer lá fora. O con­selho que os pa­les­ti­ni­anos nos deram foi fa­zermos as coisas nor­mais que gos­ta­ríamos de fazer e tentar ig­norar o que está à volta», adi­anta.

Cada vez que há uma re­ta­li­ação is­ra­e­lita, são or­ga­ni­zados co­mí­cios de ra­di­cais is­lâ­micos nas zonas mais bom­bar­de­adas. «Eles tentam apro­veitar-se da fra­gi­li­dade e da re­volta pro­vo­cada pelos bom­bar­de­a­mentos para ga­nhar mais força e para re­crutar novos mem­bros. Os pa­les­ti­ni­anos têm cons­ci­ência disso e sabem que estes fun­da­men­ta­lismos são con­sequência dos bom­bar­de­a­mentos de Is­rael», de­clara o di­ri­gente da JCP.

«As pes­soas com quem fa­lámos não con­cordam com os aten­tados e sabem que estes só vão parar quando acabar a ocu­pação is­ra­e­lita e for cons­ti­tuído o Es­tado Pa­les­ti­niano. Outra coisa que re­ferem é que não basta criar o Es­tado, mas também as­se­gurar a de­mo­cracia in­terna e com­bater o fun­da­men­ta­lismo que po­derá vir a ter pre­ten­sões de tomar o poder», acres­centa.


Check points
A arma mais vi­sível do ini­migo


Só na Cis­jor­dânia, ter­ri­tório pa­les­ti­niano com menos de seis mil qui­ló­me­tros qua­drados, existem cerca de 300 check points. Al­guns são per­ma­nentes, ou­tros são mon­tados tem­po­ra­ri­a­mente pelo exér­cito is­ra­e­lita.

«Um tra­jecto que de­mora vinte mi­nutos a pé pode ter dois ou três check points. São pre­cisas então três ou quatro horas para per­correr esse ca­minho. O re­gresso nunca é ga­ran­tido, por isso há quem opte por viver em casa de amigos ou dormir no em­prego. Qual­quer mo­bi­li­dade é um risco cons­tante», re­fere Nelson Silva.

«Nos check points, são cons­tantes as hu­mi­lha­ções. Os mi­li­tares is­ra­e­litas cospem nos pa­les­ti­ni­anos, batem-lhes e prendem-nos sem razão apa­rente. Não há cri­té­rios de­fi­nidos sobre quem passa e quem não passa. Em al­guns check points há caixas cheias de pa­pe­li­nhos que os pa­les­ti­ni­anos tiram à sorte. Con­forme o papel que lhes sai, passam, não passam, ficam à es­pera três horas ou levam um pon­tapé no estô­mago. É mesmo uma coisa do outro mundo», con­si­dera.

Outra prá­tica comum do exér­cito is­ra­e­lita é a ocu­pação de casas para as trans­formar em postos de vi­gi­lância du­rante uns dias ou umas se­manas. «Trancam a fa­mília numa di­visão e muitas vezes des­troem a casa toda por dentro, comem-lhes os ali­mentos e, quando se vão em­bora, des­trancam a fa­mília. Numa das casas que vimos, a fa­mília foi tran­cada na cave du­rante duas se­manas. Era uma fa­mília nu­me­rosa, com cri­anças, uma mu­lher grá­vida de sete meses, dois idosos... Quando os is­ra­e­litas re­sol­veram sair, dei­xaram a fa­mília tran­cada na cave e des­truíram a casa. Apenas se sal­varam os dois idosos. Quando lá es­ti­vemos, a pro­tecção civil ainda es­tava a tentar tirar os corpos», conta.

Para os tan­ques po­derem cir­cular, Is­rael não he­sita em des­truir as ha­bi­ta­ções pa­les­ti­ni­anas. «Em Na­blus – uma das ci­dades mais an­tigas do mundo, Pa­tri­mónio da Hu­ma­ni­dade – as ruas são muito es­treitas, o que di­fi­culta o mo­vi­mento das tropas is­ra­e­litas. Então eles des­troem casas mi­le­nares para poder passar», de­nuncia.


E-mail


Du­rante a vi­agem, os jo­vens co­mu­nistas aper­ce­beram-se da gra­vi­dade da si­tu­ação vi­vida pelos pa­les­ti­ni­anos e da im­por­tância da so­li­da­ri­e­dade in­ter­na­ci­onal, tal como é vi­sível num e-mail en­viado para o PCP por um deles, Litos Al­meida, no dia 5.

«Aqui as coisas pi­oram de dia para dia. Por causa dos aten­tados, pro­va­vel­mente eles vão fazer bom­bar­de­a­mentos esta noite. Nós es­tamos em Ra­malah e amanhã vamos para Jenin, onde a si­tu­ação é ainda pior. Este povo sofre e nin­guém sabe, nem faz nada. Os sol­dados as­saltam as casas e roubam a co­mida, re­vistam tudo, prendem e matam pes­soas. E tudo ao som das mú­sicas que cantam e as­so­biam com prazer. Hoje es­ti­vemos em Na­blus e vimos o in­ferno ao vivo e a cores. Façam al­guma coisa aí. Eles pre­cisam de ajuda, muita ajuda», lê-se no e-mail.