Vergonha

Jorge Cadima

Raras vezes uma guerra terá sido ini­ciada pe­rante um des­cré­dito tão com­pleto dos seus res­pon­sá­veis. As men­tiras per­ma­nentes e su­ces­sivas, a fal­si­fi­cação de do­cu­mentos e ar­gu­mentos, os per­ma­nentes zi­gue­za­gues nas ex­pli­ca­ções «ofi­ciais» quanto às ra­zões e ob­jec­tivos da guerra, o total des­res­peito pela Carta da ONU e o Di­reito In­ter­na­ci­onal, re­sultam de um pro­blema de fundo. É que é in­con­fes­sável o ob­jec­tivo real desta guerra: a do­mi­nação co­lo­nial dos re­cursos ener­gé­ticos do pla­neta, ao ser­viço duma es­tra­tégia de do­mi­nação mun­dial por parte do im­pe­ri­a­lismo norte-ame­ri­cano.

Esta es­tra­tégia de do­mi­nação pla­ne­tária, que muitos ti­veram di­fi­cul­dade em com­pre­ender e aceitar du­rante as an­te­ri­ores guerras de agressão do im­pe­ri­a­lismo (Guerra do Golfo, Ju­gos­lávia, Afe­ga­nistão), tornou-se agora uma evi­dência para mi­lhões de seres hu­manos. A ex­tra­or­di­nária opo­sição de massas contra a agressão ao Iraque, ainda antes do seu co­meço, re­flecte essa to­mada de cons­ci­ência, e por sua vez agu­dizou todas as con­tra­di­ções e di­fi­cul­dades para os se­nhores da guerra. Este gi­gan­tesco mo­vi­mento de pro­testo está já a marcar a si­tu­ação mun­dial e as suas pers­pec­tivas. Como também acon­tece com a ex­plosão pú­blica dessa outra re­a­li­dade: as cres­centes cli­va­gens e ri­va­li­dades entre po­tên­cias ca­pi­ta­listas. Ao longo dos úl­timos anos ha­viam-se ma­ni­fes­tado de forma in­tensa, mas dis­creta: nas chan­ce­la­rias, em reu­niões in­ter­na­ci­o­nais, em guerras co­mer­ciais, ou nos con­flitos em países dis­pu­tados por essas po­tên­cias. Em pú­blico, pre­do­mi­nava uma so­li­da­ri­e­dade de classe be­li­cista. Mas a es­ca­lada e ar­ro­gância uni­la­te­rais do go­verno Bush con­du­ziram aos em­bates pú­blicos em torno duma questão de ca­pital im­por­tância. Quem ouviu as re­fe­rên­cias de Bush (na Con­fe­rência de Im­prensa das Lajes) ou dos mi­nis­tros bri­tâ­nicos (no início desta se­mana) à França, com­pre­ende que se de­senha um «ajuste de contas» do im­pe­ri­a­lismo norte-ame­ri­cano e seus po­o­dles com aqueles que se atre­veram a atra­vessar-se no seu ca­minho.

O Mundo vive já uma crise his­tó­rica. A crise eco­nó­mica do ca­pi­ta­lismo é uma re­a­li­dade in­con­tor­nável. A crise po­lí­tica e mi­litar ge­rada pela ofen­siva global do im­pe­ri­a­lismo norte-ame­ri­cano ainda vai no início. Ainda antes do co­meço desta guerra já se anun­ciam pu­bli­ca­mente os pró­ximos alvos: Co­reia do Norte, Irão, Síria. Ou­tros alvos, mai­ores, estão também na mira. O cam­peão mun­dial do des­res­peito por re­so­lu­ções da ONU, Is­rael, pros­segue im­pu­ne­mente um mas­sacre diário que as­sume os con­tornos de um ge­no­cídio e de uma lim­peza ét­nica. As Na­ções Unidas são hu­mi­lhadas. Até o mais fer­ranho dos «eu­ro­peistas» tem de con­fessar que o fu­turo da União Eu­ro­peia é hoje uma in­cóg­nita. Por todo o lado, afirma-se a lin­guagem na­tural do im­pe­ri­a­lismo: a força.

É neste con­texto que o Go­verno PSD/​PP hu­milha Por­tugal ao aco­lher a Ci­meira da Guerra em solo na­ci­onal. Após a II Guerra Mun­dial, a Co­missão para o Di­reito In­ter­na­ci­onal da ONU for­mulou os prin­cí­pios le­gais saídos do Jul­ga­mento de Nu­rem­berga. Con­si­derou como crimes pu­ní­veis ao abrigo do Di­reito In­ter­na­ci­onal os «crimes contra a Paz: (i) pla­ni­fi­cação, pre­pa­ração, de­sen­ca­de­a­mento ou con­dução de uma guerra de agressão ou uma guerra em vi­o­lação dos Tra­tados, acordos ou ga­ran­tias in­ter­na­ci­o­nais; (ii) a par­ti­ci­pação num plano con­junto ou cons­pi­ração vi­sando con­cre­tizar qual­quer das ac­ções re­fe­ridas em (i)». Os pro­ta­go­nistas da reu­nião das Lajes, entre os quais o Pri­meiro Mi­nistro de Por­tugal, en­traram para a His­tória como res­pon­sá­veis di­rectos de um crime contra a Paz. Para ver­gonha do nosso País. Cabe agora aos tra­ba­lha­dores e ao povo por­tu­guês mos­trar, com a sua luta, que Por­tugal não apoia as guerras im­pe­ri­a­listas. Nos pró­ximos dias os por­tu­gueses sairão à rua. Pela Paz e em de­fesa da nossa dig­ni­dade pe­rante o Mundo.



Mais artigos de: Opinião

A festa de aniversário

O aniversário das legislativas de 17 de Março, que levaram a maioria de direita ao governo, foi uma festa. A comemoração estendeu-se pelo fim de semana, com os ministros em festa ambulante a discursar hossanas aos grandes feitos do seu primeiro ano de «sacrifícios pelo...

Um tema ridículo?

No passado dia 14, o Presidente da República considerou «um tema ridículo» as referências à existência de divergências institucionais entre a Presidência e o Governo quanto à intervenção militar no Iraque. Manifestando alguma...

Ainda os genéricos

No passado dia 13, no «Telejornal» da RTP/1, o Ministro da Saúde, em apenas quinze palavras, ofereceu inadvertidamente ao país um exemplar retrato das estranhas concepções que lhe povoam a cabeça e comandam as decisões. Com efeito, estava-se no primeiro dia da...

O mordomo

Toda a gente sabe, por repetidamente ouvir dizer, que pesado é o fardo de governar. O facto de os candidatos serem mais do que as mães em nada contradiz a asserção, antes atesta o elevado espírito de sacrifício dos aspirantes ao cargo. É claro que neste, como noutros...

Três evidências

Em­bora tudo isso possa ser muito pouco im­por­tante se, no mo­mento em que estas li­nhas co­nhe­cerem a luz do dia, já mi­lhares de to­ne­ladas de bombas se­me­arem a morte e a des­truição no Iraque, com­pre­enda-se que in­sis­tamos em al­gumas evi­dên­cias - por­ven­tura aces­só­rias mas com sig­ni­fi­cado - que se des­ven­daram nos úl­timos meses em torno da pre­pa­ração desta agressão.