Música

A importância das aspas

Manuel Augusto Araújo

Anun­ci­ando um re­cital que Ka­rita Ma­tilla ia re­a­lizar na Fun­dação Gul­ben­kian(*) não po­demos deixar de tecer al­guns re­paros a um co­men­tário de Jorge Ro­dri­gues no pro­grama da An­tena 2, Ri­tor­nello, no dia 17 de Março.

De­pois de ter no­ti­ciado o re­cital, Jorge Ro­dri­gues (J.R.) passou o ex­certo de uma en­tre­vista que fez à so­prano, em que lhe per­gun­tava o que sig­ni­fi­cava para ela o ser con­si­de­rada uma diva. Na re­posta, Ka­rita Mar­tilla, em sín­tese, as­sumiu-se como uma diva no sen­tido em que a sua ca­pa­ci­dade vocal e in­ter­pre­ta­tiva se dis­tin­guia no pa­no­rama vocal exis­tente e que, em re­lação às suas an­te­ces­soras, se po­deria com­parar com uma Kirsten Flagstad, Maria Callas ou Le­ontyne Price, e con­si­de­rava que diva era uma es­pécie de con­de­co­ração que o pú­blico e a crí­tica lhe con­ce­diam ,re­co­nhe­cendo essas suas qua­li­dades. Nada mais certo e cor­recto.

O que é in­cor­recto é o co­men­tário de J.R. a estas afir­ma­ções de Mar­tilla em que, a dado passo, dizia (não é uma ci­tação pa­lavra a pa­lavra mas não se des­virtua o nu­clear) que ela tinha dito muitas ver­dades que de­viam ser ditas e ou­vidas nesta nossa época de «co­mu­nismo vocal».

O que que­rerá dizer J.R. com «co­mu­nismo vocal»? Pro­va­vel­mente J.R. até disse bem, mas es­queceu-se que na lin­guagem oral as aspas não são vi­sí­veis e que, por isso, de­veria ter tido o cui­dado de as re­ferir ,tor­nando-as au­dí­veis e ,con­se­quen­te­mente ,le­gí­veis.Se não foi isto que acon­teceu e a pa­lavra «co­mu­nismo» que usou para ad­jec­tivar vocal foi dita in­ten­ci­o­nal­mente en­tramos nos si­nu­osos ca­mi­nhos dos equí­vocos ide­o­ló­gicos.

A ve­ri­ficar-se esta se­gunda hi­pó­tese, J.R. co­mete um erro grave. Nunca o co­mu­nismo es­teve contra a exis­tência de divas, surjam elas em qual­quer área das artes, está sim contra a exis­tência e pro­li­fe­ração de prima donas, divas auto as­su­midas sem razão de o serem.

J.R. de­veria co­nhecer um ex­tra­or­di­nário texto de Marx em que, de­pois de sus­tentar que é a mú­sica que cria o ou­vido hu­mano e é a pin­tura que cria o olhar capaz de per­ceber a be­leza das formas, expõe o ca­rácter his­tó­rico e so­cial dos sen­tidos: «O modo como se tornam (os sen­tidos) seus de­pende da na­tu­reza do ob­jecto e da na­tu­reza da força do ser que lhe cor­res­ponde, porque é pre­ci­sa­mente a cer­teza dessa re­lação que forma o modo par­ti­cular, real, da afir­mação. Para o olho o ob­jecto não é o mesmo que para o ou­vido e o ob­jecto do olho é di­fe­rente do do ou­vido. A par­ti­cu­la­ri­dade da força de qual­quer ser é jus­ta­mente a sua es­sência par­ti­cular da sua ob­jec­ti­vação, do seu ser vivo ob­jec­tivo e real. Não foi, pois, apenas pelo pen­sa­mento, mas através de todos os sen­tidos que o homem se afirmou no mundo ob­jec­tivo.»(**)

Este texto, na sua imensa com­ple­xi­dade, per­mite lei­turas di­versas mas não per­mite in­ter­pre­ta­ções di­ver­gentes.

A tese que aí é for­mu­lada é que ,e re­por­tando-nos à questão em apreço, só um cada vez maior co­nhe­ci­mento da mú­sica pos­si­bi­lita que essa mesma mú­sica seja cada vez mais e me­lhor usu­fruída e en­ten­dida. É evi­dente que o co­nhe­ci­mento da mú­sica é ad­qui­rido ou­vindo-a e ou­vindo pro­gramas in­te­res­santes como o Ri­tor­nello ou tendo ou­vido ,por exemplo, João de Freitas Branco na (fa­le­cida)Te­le­visão a ex­plicar com in­fi­nita cla­reza a te­tra­logia de Wagner que a se­guir se exibia com a en­ce­nação de Pa­trice Che­reau e a di­recção de Pi­erre Boulez ,ou es­cu­tando e per­ce­bendo as di­fe­renças entre a 5.ª sin­fonia de Mahler di­ri­gida por Scher­chen,Bar­bi­rolli ou Rattle ,etc.,etc.

É claro que, para se des­co­brirem e afir­marem mais e me­lhores divas, é ne­ces­sário que o nú­mero de can­tores e de ou­vintes seja cada vez maior para que a qua­li­dade dos can­tores e dos ou­vintes se vá apu­rando e tor­nando mais exi­gente .Sobre isto J.R. de­veria deter-se em Gramcsi ,que sobre este tema de­sen­volve uma série de teses in­te­res­san­tís­simas.

Pre­su­mimos que se tratou de um lapso de J.R., porque de outro modo seria supor que con­funde co­mu­nismo com os «co­mu­nismos» como foram ac­ti­va­mente pra­ti­cados - e por lá con­ti­nuam a co­e­xistir com ou­tras prá­ticas, o que é ob­vi­a­mente co­e­rente - pelos José Carlos Es­pada, José Ma­nuel Fer­nandes, Pa­checo Pe­reira, Durão Bar­roso e ou­tros que tais, o que, como ou­vinte ha­bi­tual do Ri­tor­nello – sem nunca e com grande pena ter con­se­guido obter os bi­lhetes ofe­re­cidos, as ten­ta­tivas também nunca foram muito in­sis­tentes - não acre­di­tamos até porque nesse mesmo dia J.R. ini­ciou uma se­mana em que a mú­sica foi es­co­lhida na base de textos es­critos por Alejo Car­pen­tier, um co­mu­nista que, e até ao fim da sua vida, de­fendeu o seu país, Cuba, e a Re­vo­lução Cu­bana. Pelo que este re­paro, que achamos ne­ces­sário e per­ti­nente, tem por única in­tenção su­bli­nhar o cui­dado que se exige tantos aos au­tores como aos au­di­tores, noutro pro­grama isto não teria a mesma im­por­tância. Também aqui, e com as de­vidas dis­tân­cias, um pro­blema de re­co­nhecer ou não re­co­nhecer divas.

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(*) A so­prano Ka­rita Mar­tilla, no Grande Au­di­tório da Fun­dação Ca­louste Gul­ben­kian, dia 29 de Março às 19h00, acom­pa­nhada ao piano por Tuija Hak­kila e cantou Du­parc, Si­be­lius, Ra­ch­ma­ninov, Dvorák.

(**) Ma­nus­critos Eco­nó­micos e Fi­lo­só­ficos.



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