Aos Mortos-Vivos do Tarrafal

Poema es­crito quando da tras­la­dação dos restos mor­tais dos tar­ra­fa­listas para Lisboa, em 17 de Fe­ve­reiro de 1978. Acom­pa­nhados por muitos mi­lhares de pes­soas que assim lhes pres­taram ho­me­nagem, re­pousam no ce­mi­tério do Alto de S. João, em Lisboa.

Ao cabo de Cabo Verde
do­brado o cabo da guerra
quando o mar sabia a sede
e o sangue chei­rava a terra
acabou por ser mais forte
a es­pe­rança per­se­guida
porque acon­teceu a morte
sem que se aca­basse a vida.

Ao cabo de Cabo Verde
no campo do Tar­rafal
é que o fu­turo se ergue
verde-rubro Por­tugal
é que o pas­sado se perde
na tumba co­lo­nial.
Ao cabo de Cabo Verde
não morreu o ideal.

Entre o chi­cote e a ma­lária
entre a fome e as bi­li­oses
os már­tires da classe ope­rária
re­cu­peram suas vozes.
E vêm dizer aqui
do cabo de Cabo Verde
que não mor­reram ali
porque a es­pe­rança não se perde.

Bento Gon­çalves tor­neiro
ainda tra­ba­lhas o ferro
deste povo ver­da­deiro
sem a fer­rugem do erro.

Cal­deira de nome Al­fredo
e tu também Cas­te­lhano
e também cada ma­rujo
que morreu a todo o pano.

Todos vivos! Todos nossos!
vinte trinta cem ou mil
ne­nhum de vós é só ossos
sois todos cravos de Abril!

No campo do Tar­rafal
no sítio da fri­gi­deira
has­teava Por­tugal
a sua maior ban­deira.

Ban­deira feita em se­gredo
com as agu­lhas das dores
pois o tempo do de­gredo
mu­dava o sen­tido às cores:
o verde de Cabo Verde
o chão da re­forma agrária
e o Sol ver­melho esta sede
duma água pro­le­tária.

Do cabo de Cabo Verde
chegam tão vivos os mortos
que um mo­nu­mento se ergue
para cama dos seus corpos.
Pois se o sono é como o vento
que mo­tiva um golpe de asa
é a vida o mo­nu­mento
dos que vol­taram a casa.

José Carlos Ary dos Santos


Mais artigos de: Argumentos

Confissões da Pastoral Social (1)

Em Setembro de 1985 decorreu em Fátima a «III Semana Nacional da Pastoral Social». Já lá vão, desde então, 18 anos que deveriam ter sido de mudanças democráticas no panorama político e social do país e da igreja. Mas não. Revelam-se agora projectos ocultos que vêm de longe. As horas difíceis que vivemos apenas...

Indignações

Subitamente, quando tudo parecia correr normalmente dentro da anormalidade esbanjadora de dinheiros públicos (já repararam quanto representa o custo previsto da construção da Casa da Música em comparação com a fatia do orçamento de Estado 2003 atribuida ao Ministério da Cultura) e da não menor anormalidade programática...

Uma espécie de emigrante

Os portugueses que não encontram em Portugal condições para trabalhar emigram, se tanto puderem, quase sempre com a morte na alma. Descobri um dia destes que o mesmo acontece comigo, embora de outra e ténue maneira: como os canais portugueses de televisão dificilmente me fornecem temas que mereçam reflexão e comentário...