
- Nº 1568 (2003/12/18)
Comentário
O falhanço da Cimeira de Bruxelas
Europa
Foi positivo o falhanço da Conferência Intergovernamental. A falta de acordo deveu-se às enormes contradições e aos interesses diversos das maiores potências europeias. As posições maximalistas da França e da Alemanha não podiam ser aceites pela Espanha e pela Polónia, que perdiam poder de decisão face a Nice. Mas é óbvio que tinham apoios mais ou menos declarados de outros.
Se é certo que a recente decisão quanto ao Pacto de Estabilidade demonstrou quem mandava na zona euro, ao recusar a aplicação de quaisquer sanções à França e à Alemanha por não cumprirem os critérios de convergência nominal, havia contradições que vinham de trás, incluindo do apoio à coligação americano-britânica na invasão ilegal e ocupação inadmissível do Iraque.
Se é certo que os interesses do capitalismo neoliberal unem a direita e a social democracia europeia, há interesses próprios e alianças internacionais e de grupos económicos que divergem dos interesses franco-alemães. Veja-se como a Administração Bush reparte, entre os amigos, os contratos para empresas americanas e europeias intervirem no Iraque. O saque não é igual para todos.
Mas se a falta de acordo em Bruxelas sobre o aprofundamento da integração europeia não é um drama, e até tem aspectos positivos, porque impede, a curto prazo, a perda de mais soberania portuguesa, não resolve, no entanto, os problemas actuais.
Sabíamos que estávamos num momento particularmente crítico da integração europeia, com decisões cada vez mais centralistas, de um capitalismo mais agressivo, de uma via cada vez menos democrática e perigosamente militarista.
O texto que a Convenção Europeia elaborou, a chamada constituição europeia, procurou abrir caminho para um grande salto no aprofundamento da integração europeia e visou condicionar os trabalhos da Conferência Intergovernamental. Mas foram longe de mais. Por muito que tenham repetido que é preciso simplificar e democratizar o processo de decisão comunitário, antes da entrada de dez novos países, foi notório o défice democrático de todo o processo, a que se seguiu a chantagem dos «grandes» em torno dos meios financeiros.
Assim, nos debates que realizámos, tornámos claro que estavam em confronto dois modelos de sociedade completamente opostos:
- Por um lado, o aprofundamento do capitalismo na sua fase mais agressiva do neoliberalismo, que precisa de mais centralismo, burocracia e reforço do militarismo para tentar impor-se com mais facilidade junto dos mais débeis.
- Por outro lado, o aprofundamento de uma via democrática e solidária, assente nos princípios da igualdade entre estados soberanos, que buscam a cooperação e a coesão económica e social para o desenvolvimento sustentável e a paz.
A nossa opção é clara. É o segundo. Mas para conseguir a sua concretização, temos pela frente uma batalha difícil. Que o falhanço da Cimeira de Bruxelas não resolveu. Apenas impediu novos agravamentos da actual situação.
É que estamos a viver diariamente as consequências das políticas do modelo neoliberal, com mais desemprego, piores serviços públicos, mais precaridade do emprego, que segue o caminho traçado em Maastricht, prosseguido em Amesterdão e Nice, aprofundado com a chamada estratégia de Lisboa, que acelera liberalizações e privatizações, com o primado da concorrência e a sua sobreposição quanto às políticas sociais, impedindo uma verdadeira política de inclusão social.
Ora, o projecto da mal dita constituição europeia aprofunda este caminho e aposta no desenvolvimento da União Europeia como bloco político-militar, defendendo uma política externa e de segurança comum, com o lançamento das bases institucionais e conceitos estratégicos da sua militarização, em que se destaca a criação de uma Agência Europeia de Armamento, de Investigação e de Capacidades Militares, mantendo sempre a ligação à NATO, esquecendo mesmo que há Estados que são membros da União Europeia mas não são membros da NATO.
No plano institucional, o texto elaborado pela referida Convenção, enterra, na prática, o princípio fundamental «de Estados soberanos e iguais em direitos», que vinha do Tratado de Roma e abre caminho à criação de um super-Estado, designadamente com o seu artigo 10.º, apostando no reforço do federalismo.
Esse reforço poderia ser conseguido através de uma via federalista mais directa, com poderes acrescidos da Comissão, transformada num autêntico governo da União Europeia, e o reforço dos poderes do Parlamento Europeu, a sobrepor-se aos Parlamentos Nacionais, desvalorizando-os, ou através do reforço de poderes do pequeno grupo de maiores países, com a criação de um «directório», um Presidente Europeu e um Ministro dos Negócios Estrangeiros, o fim das presidências rotativas e a diminuição dos casos em que ainda se pode usar o direito de veto, já tão afectado em Nice.
Agora, pretendiam o reforço do critério demográfico no peso dos votos no Conselho, dando aos quatro ou cinco governos dos maiores países a possibilidade de bloquearem uma decisão dos outros vinte. Deste modo, procurava-se uma maior centralização do poder. O que a Espanha e a Polónia não aceitaram.
De igual forma, o reforço dos poderes do Parlamento Europeu, onde facilmente os deputados dos quatro ou cinco maiores países conseguem obter a maioria, contribui para impor aos pequenos e médios os interesses daqueles, embora seja verdade que também há forças progressistas e solidárias na Alemanha, França, Itália ou Reino Unido. Só que estão em minoria, e isso não pode ser esquecido no momento actual.
Daí que o aprofundamento do federalismo, em qualquer das suas formas, sirva claramente, na situação presente, e no contexto das actuais forças políticas e dos movimentos sociais, para reforçar os mecanismos do neoliberalismo, para que este se pudesse impor sem problemas na União Europeia.
Sabemos que o falhanço da Cimeira de Bruxelas não resolveu os problemas. Mas não os agravou. Pelo que abre novas esperanças na luta que temos de continuar a fazer para conseguir uma Europa de mais justiça social, de desenvolvimento, de coesão económica e social, de paz e cooperação com os povos de todo o mundo.
Ilda Figueiredo