Exame de consciência

Anabela Fino
Um ano depois da invasão do Iraque, jornalistas norte-americanos reconhecem que o medo de serem tomados por antipatriotas e a pressão da concorrência condicionaram a forma como abordaram a questão da alegada luta contra o terrorismo. A confissão, feita numa conferência realizada a semana passada na Universidade da Califórnia, em Berkeley, não sendo surpreendente, suscita reflexão.
É sem dúvida meritório que os profissionais dos média admitam agora não ter feito «o seu trabalho», e venham dizer publicamente que aceitaram sem questionar os argumentos fornecidos pela administração Bush para justificar a guerra. E também não é menos louvável que, com o passar do tempo, estejam a vir a lume as denúncias de mentiras, falsificações, notícias forjadas que alimentaram a histeria mediática com a guerra anunciada e contribuíram, objectivamente, para o aumento de tiragens e audiências. Mas é caso para se dizer que «tarde piaram», embora também se possa admitir que «mais vale tarde do que nunca».
O que é preocupante, na verdade, é que a imprensa supostamente livre das sociedades supostamente democráticas estejam afinal tão expostas tanto ao poder político como ao poder económico.
Percebe-se que não devia ser fácil, quando os norte-americanos se encontravam em estado de choque com os atentados de 11 de Setembro, contrariar o discurso oportunista e vingativo da Casa Branca com análises serenas e ponderadas sobre o que estava de facto em causa. Mas esse é o papel dos média que não pode ser alienado, sob pena de se tornarem meros papagaios de repetição do governo ou, o que não é menos grave, a «voz do dono» que paga o pão com manteiga, o que mais cedo ou mais tarde resulta em descrédito.
O caso dos tubos de alumínio encontrados no Iraque e logo apresentados como podendo ser usados em centrifugadoras para enriquecimento de urânio, logo para fabricar armas atómicas, é paradigmático. Qualquer especialista em questões nucleares poderia ter desfeito a confusão, mas o reputado «New York Times» não se deu a tal trabalho. A questão que se coloca é: porquê?
A quem serviu a mentira, a precipitação, a manipulação? A resposta não é difícil de encontrar. Enquanto uns faziam manchetes e subiam tiragens, outros legitimavam o ilegítimo para servir os seus fins.
Importa dizer que jornalistas houve que souberam resistir à pressão política e às exigências empresariais, recusando embarcar na voragem da verdade oficial, do exclusivo, da notícia em primeira mão que ninguém teve tempo ou se deu ao trabalho de confirmar. Mas não é fácil ser herói e a coragem paga-se cara.
Passado um ano, os EUA têm as mãos no petróleo iraquiano e os pés assentes numa importante zona estratégica do globo, à custa de mortos que ninguém se dá ao trabalho de contar e de outros que se contam às escondidas. Os média fazem o seu exame de consciência, penitenciam-se e apresentam-se ao público de cara lavada. Até à próxima guerra. Até à próxima manifestação. Até ao próximo choque de interesses. A luta de classes, é bom não esquecer, afinal existe.


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