«Constituição» europeia

O projecto maldito

Com o alargamento da UE, aumentaram as pressões para que os 25 estados-membros aprovem o projecto constitucional chumbado no final do ano passado.

Mesmo que seja aprovado pelos 25, o projecto será referendado em vários países

Lançada na cimeira de chefes de Estado e de governo de Laeken (Bélgica), em Dezembro de 2001, e elaborada no seio de um restrito fórum criado especialmente para o efeito - a Convenção sobre o Futuro da Europa - a polémica constituição europeia está longe de reunir o consenso dos povos que integram a União.
Presidida pelo ex-presidente francês, Valéry Giscard d'Estaing, a Convenção reuniu representantes dos chefes de Estado e de governo, deputados dos maiores partidos dos parlamentos nacionais e do Parlamento Europeu e dois representantes da Comissão Europeia.
Dezasseis meses depois, a Convenção deu por concluído o trabalho, entregando aos chefes de Estado e de governo reunidos em Salónica (Grécia), em 20 de Junho de 2003, o projecto de Constituição, que serviria de base às negociações entre governos lançadas, em Outubro, no âmbito da Conferência Intergovernamental.
Entre outras alterações, o projecto elaborado pela Convenção confere personalidade jurídica à União, reforça os poderes atribuídos ao Parlamento Europeu (co-decisão), cria um ministro dos Negócios Estrangeiros europeu e um presidente da União (com um mandato de dois anos e meio, em vez dos actuais seis meses) e incorpora a Carta dos Direitos Fundamentais (aprovada por Convenção em Dezembro de 2000), que passa a ter carácter vinculativo.
O projecto introduz igualmente alterações controversas, como a relativa à composição da Comissão Europeia (que passa a ter apenas um comissário por Estado-membro) ou o artigo 10.º o que diz que «A Constituição e o direito adoptado pelas instituições da União no exercício das competências que lhe são atribuídas primam sobre o direito dos Estados-membros».
Até o nome dado ao tratado (constituição) ou a introdução no preâmbulo de uma referência à herança judaico-cristã da Europa (que envolveu o próprio Papa) continuam a ser motivo de acesa contestação.

Repartição do poder

Porém, nos mais de 300 artigos do documento, a falta de acordo sobre a alteração do sistema voto das decisões comunitárias no seio do Conselho de Ministros, onde a maioria qualificada será generalizada em detrimento da unanimidade, revelou-se um factor determinante para o fracasso do projecto.
O texto prevê que as decisões comunitárias por maioria qualificada deverão reunir os votos favoráveis de uma maioria de Estados-membros que representem uma maioria da população da União (a chamada dupla maioria).
Madrid e Varsóvia, que conquistaram em Nice um peso nas votações comunitárias idêntico ao dos «grandes», recusaram-se desde o início a ceder nesta matéria. Por isso, o resultado da cimeira de Bruxelas, que encerrou a presidência italiana da UE, em Dezembro do ano passado, não foi totalmente inesperado.
O impasse nas negociações só começou a ser ultrapassado em Março deste ano quando, ao vencer as eleições legislativas espanholas, o socialista Rodríguez Zapatero anunciou a intenção de «acelerar a adopção da Constituição europeia», levando a Polónia a mostrar também sinais de abertura.
Reunidos em Bruxelas, os dirigentes europeus chegaram a acordo para relançar as negociações sobre o projecto de Constituição e fixaram o objectivo de a adoptar «o mais tardar» na cimeira de encerramento da presidência irlandesa da União, a 17 e 18 de Junho.
Contudo, o documento, mesmo que seja aprovado em Junho, terá ainda de ser ratificado (países como o Reino Unido, Dinamarca, Luxemburgo e Irlanda já anunciaram a realização de referendos) pelos 25 Estados-membros.
Até lá, a União reger-se-á pelo Tratado de Nice, que entrou em vigor em Fevereiro de 2003 (as disposições relativas à Comissão entram em vigor a 1 de Novembro de 2004 e a nova composição do Parlamento Europeu aplica-se a partir das eleições europeias de Junho deste ano).
De acordo com este tratado, as decisões comunitárias passam a ser adoptadas por uma dupla maioria (de Estados-membros e de votos), na Comissão passa a haver apenas um representante por país (os «grandes» perdem o seu segundo comissário), o Parlamento Europeu passa de 626 para 732 lugares (Portugal fica com menos um lugar, 24), são alargados os domínios em que as decisões passam a ser adoptadas por maioria qualificada e são flexibilizadas as cooperações reforçadas.

Pressões e chantagem

O primeiro-ministro irlandês, Bertie Ahern, cujo país preside à União Europeia, sublinhou, no sábado, que a falta de acordo dos 25 sobre a constituição porá em causa o bom funcionamento do processo de decisão.
No entanto, mesmo que os Estados-membros aprovem o texto até 17 de Junho, deverá seguir-se o processo de ratificação o que, nalguns casos, incluirá a realização de referendos. Em caso de rejeição por um país, todo o processo ficará bloqueado.
Tal eventualidade, segundo afirmou o presidente da Comissão Europeia, Romano Prodi, não está por enquanto prevista no projecto já que, sublinhou, a proposta por si apresentada à Convenção (fórum que elaborou o projecto constitucional) de excluir da UE um país que não ratificasse a Constituição foi recusada.
Sobre o mesmo tema, em tom de ameaça, pronunciou-se o presidente da Convenção Europeia, Valéry Giscard d’Estaign, que, na quinta-feira 29, advertiu a Grã-Bretanha de que ficará «à margem» da União Europeia, caso o referendo venha a rejeitar a futura Constituição da UE. «Se a Grã-Bretanha disser “não” deverá assumir as consequências da sua opção», afirmou Giscard d’Estaign, numa entrevista à BBC-Rádio.
«Sempre quis que a Grã-Bretanha integrasse o sistema. Infelizmente, os britânicos dizem não e os outros dizem que querem avançar. Então, eles (os outros membros da UE) têm de chegar a um acordo», disse. «Mas, nessa altura, a Grã-Bretanha vai deixar de estar no centro do sistema para passar a estar à margem». «Não digo fora da Europa, mas à margem», ou seja, «numa situação semelhante à que acontece hoje com o euro», que Londres não adoptou.
Recorde-se que o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, anunciou, no passado dia 20 de Abril, que os britânicos vão ser consultados em referendo sobre a futura constituição europeia.
Por seu turno, o presidente francês, Jacques Chirac, declarava no mesmo dia ser favorável a que se exerça uma «pressão amigável» sobre os países que rejeitarem a futura Constituição Europeia. «Não sou contra a ideia de que haja um meio de pressão amigável sobre países que recusarem a Constituição, porque, nesse momento, todos os outros são bloqueados. Agora somos 25», declarou o presidente francês.
«Teoricamente, e hoje, na hipótese de um único Estado a recusar – ou, por maioria de razões, vários - a Constituição não será adoptada e regressaremos à situação (do Tratado) de Nice», disse Chirac.
«Há actualmente, nomeadamente entre os nossos amigos alemães, a ideia de que talvez se possa considerar que, ao fim de um certo tempo, por exemplo dois anos, os países que não a tiverem ratificado sejam conduzidos, quer a ratificar, quer a sair (da União Europeia), o que é evidentemente um golpe um pouco rude, mas talvez seja uma solução positiva».
Já o chanceler alemão, Gerhard Schroeder, desejaria que a Constituição Europeia pudesse entrar em vigor, mesmo que não fosse ratificada por todos os Estados membros da UE. «Temos de encontrar regras para que a Constituição possa entrar em vigor, ainda que o processo de
ratificação não esteja terminado num ou noutro país».


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