O «herrenvolk»

Correia da Fonseca
Com o escândalo das torturas em Abu Ghraib a fazerem na TV portugueses dura concorrência ao caso da Casa Pia, o que para muitos será decerto motivo de grande pena, tenho procurado ouvir todos os debates e declarações que acerca daquele tema as diversas estações me têm trazido e, portanto, ouvi também as palavras do dr. Mário Soares. Disse ele, se não ouvi mal, como ficara chocado com as imagens que foram divulgadas por todo o mundo e quanta surpresa e decepção elas lhe tinham suscitado, tantos anos depois das imagens dos campos de concentração nazis e soviéticos. Ouvi, e fiquei entre surpreso e alvoroçado: ali estava, enfim, alguém que viu imagens terríveis de campos soviéticos, experiência que por mim nunca me foi dado ter e que, por sinal, até agora ninguém por mim conhecido de perto ou de longe tivera. Como toda a gente, soube, isso sim, de relatos escritos, mas é claro que fotos e/ou filmes são outra coisa, com maior poder probatório. Por isso tenho de reconhecer que quanto aos tão falados campos soviéticos o meu imaginário «dossier» está escassamente instruído, o que até espanta, porque fotos e mesmo filmes não são propriamente coisa de ontem e de hoje, o que a documentação dos campos nazis abundantemente lembra. Veio agora o dr. Soares referir, embora de passagem, imagens desses badalados lugares da ex-URSS, e, acreditando que não o fez apenas em obediência à já habitual simetria, que aliás sempre me pareceu viciada, entre neofascismo e comunismo, fico, não direi mais descansado, mas sim mais curioso. Espero confiadamente que um dia destes alguém mas mostre para que eu passe a ter a certeza de que existem. E, como é natural, desejando que não sejam como umas da Roménia de Ceausesco que depois se soube decorrerem mais da força da vontade que da verdade.

Di­fe­rente e me­lhor

Voltando a Abu Ghraib e às torturas cometidas pelos exércitos libertadores do Iraque, dou-me conta de que a TV anda a tentar convencer-me de que se tratou de lamentáveis casos esporádicos e excepcionais, colocando em segundo ou terceiro plano algumas opiniões que contrariam esta informação. É certo que nos últimos dias se têm avolumado declarações no sentido de haver uma prática torcionária com carácter generalizado, apagando-se um pouco a sempre simpática explicação de que se trata de «alguns safanões dados a tempo» (para utilizar aqui as sábias palavras do dr. Salazar recolhidas por António Ferro) em sinistros terroristas, a fim de evitar enormes males. Porém, mesmo através da TV portuguesa vão sendo conhecidos aspectos capazes de levarem a duvidar desta apetecível tese. Tudo começou talvez pela prática, pelo que se viu sistemática, de os norte-americanos encarapuçarem os seus prisioneiros, mesmo os capturados nas ruas durante protestos, prática inovadora que nem os nazis adoptaram. Daqui poder-se-á passar com que há mais de dois anos vem acontecendo em Guatanamo, sendo difícil sustentar que quanto a isso se trata de procedimentos esporádicos a um ou outro preso. Quanto às próprias imagens divulgadas, que aliás parece não serem todas nem as mais chocantes, é significativo o ar de alegria e desfrute dos soldados norte-americanos que nelas surgem, atitude que também parece não ter sido adoptada pelos monstros nazis nos seus campos. Para que não se alongue excessivamente esta prosa sumária, refira-se que nas prisões iraquianas, e não só em Abu Ghraib, estão os métodos e as gentes dominantes em prisões norte-americanas maioritariamente povoadas por reclusos de cor, isto é, cidadãos em quem continua a ser pouco reconhecida a qualidade de plena humanidade e a quem, por isso, é «desculpável» aplicar regimes prisionais de severidade extrema. Na televisão portuguesa, designadamente na SIC-Notícias (cabo) têm sido transmitidas reportagens sobre este assunto.
Neste quadro, tudo, incluindo abundantes discursos oficiais e oficiosos, aponta para uma convicção que se instalou em parte dos norte-americanos, sobretudo se brancos ou «coloured» totalmente integrados (se na verdade os há): o povo dos Estados Unidos é diferente e melhor, é mais forte e tem no mundo uma missão providencial que lhes dá um estatuto especial que os legitima para quase tudo. Afinal, estão mandatados para mandar no planeta e nele implantarem uma nova ordem que é a do Bem contra o Mal, sendo o seu presidente quem define o que está de um lado e de outro dessa fronteira. São, enfim, um povo eleito, como o judaico diz de si próprio, um «herrenvolk», um povo de senhores, como a Alemanha nazi a si própria descreveu. E, agora, essa convicção «rides again» por todo o mundo. Com as consequências a ela inerentes e de que Abu Ghraib será apenas um dado visível.


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